Quando um sistema de produção está pronto para migrar da adubação por cultura para a adubação de sistema?


Autores:
Publicado em: 30/04/2021

Muito se tem falado em adubação de sistema como uma estratégia mais aprimorada de manejo nutricional de lavouras com duas ou mais culturas/espécies em sucessão, rotação ou consórcio. Porém, ainda há confusão no que diz respeito aos conceitos fundamentais e premissas envolvidas.

No cotidiano do agronegócio, nem sempre o que alguns denominam adubação de sistema representa a melhor abordagem. As fazendas/lavouras apresentam realidades distintas e reconhecer as suas características/diferenças constitui o primeiro passo para avançar num programa de adubação de sistema, o qual deve ser aperfeiçoado continuamente, à medida que aumenta o entendimento de como cada ambiente de produção se comporta e como isso influencia no desempenho das culturas.

Tradicionalmente, as quantidades de nutrientes a fornecer foram definidas pela pesquisa e recomendadas nos manuais de adubação de forma isolada por cultura, considerando os resultados da análise de solo e as exigências individuais para dimensionar a aplicação de fertilizantes a cada cultivo.

Todavia, novos fatores condicionantes surgiram a partir da melhoria gradual dos níveis de fertilidade do solo nas principais regiões produtoras, associada à intensificação do número de cultivos por ano, mesclando espécies com capacidade distinta de absorção, exportação e ciclagem de nutrientes.

Acrescenta-se, ainda, o papel do plantio direto (SPD) como sistema protetor e conservador de nutrientes, e o advento de tecnologias mais modernas e versáteis para a distribuição de fertilizantes. Nessa nova conjuntura, continuar trabalhando unicamente no modelo de adubação tradicional é desperdiçar a chance de ganhar eficiência.

Na filosofia da adubação de sistema, busca-se planejar as operações para abastecer o solo de nutrientes de modo a satisfazer a absorção pelas plantas no decorrer de um ano agrícola ou de um ciclo de rotação, ao invés de adubar cada cultura com base nas demandas individuais. Devidamente implementada, essa estratégia permite conciliar facilidades operacionais e uso eficiente de fertilizantes.

As técnicas de correção da acidez e de fornecimento de nutrientes podem ser mais efetivas ao se considerar o gerenciamento do sistema agrícola como um todo. Entretanto, a adubação de sistema não envolve apenas benefícios, pois, eventualmente, pode favorecer uma cultura em detrimento de outra. Por isso, é preciso assegurar que as escolhas agreguem mais vantagens do que desvantagens.

O plano de manejo na adubação de sistema deve ser definido com uma visão de longo prazo, usando de alternativas que potencializem a eficiência agronômica e o retorno econômico dos insumos a serem aplicados.

Dependendo do histórico da área e da combinação de culturas explorada, é possível melhor alocar a aplicação de corretivos e fertilizantes ao longo do tempo, de modo a otimizar o desempenho global do sistema. São destacados a seguir alguns aspectos a serem levados em conta para ajudar a responder a pergunta: “Quando um sistema de produção está pronto para migrar da adubação por cultura para a adubação de sistema?”

1) Fatores relativos ao solo

A adoção da adubação de sistema só é viável se o solo já alcançou o status de ambiente de fertilidade construída, quando os fatores relativos à acidez não mais constituem limitação e a disponibilidade dos principais nutrientes encontra-se acima dos respectivos níveis críticos indicados na literatura (RESENDE et al., 2016).

Tal status é atingido normalmente após vários anos de cultivo da área em plantio direto, com os devidos investimentos em calagem, gessagem, adubações corretivas e de manutenção, que geram um residual cumulativo, elevando gradativamente a fertilidade.

Se, por exemplo, o solo ainda apresenta teores de fósforo (P) abaixo do nível crítico, é recomendável que se continue utilizando a adubação no sulco de semeadura a cada cultivo, de acordo com os requerimentos individuais das culturas (adubação tradicional). Quando o nível de P na análise de solo passa a ser interpretado como adequado a alto, aí então é possível flexibilizar o fornecimento para a modalidade de adubação de sistema.

Nesse caso, o essencial é que haja a reposição do nutriente que sai nas colheitas (exportação) de maneira a reabastecer o sistema, ficando em plano secundário o momento e a forma de aplicação do fertilizante, questões que podem ser definidas conciliando as conveniências para o sistema de culturas e para o produtor.

É importante também que as características do solo (textura) e da área (topografia) não impliquem em propensão a grandes perdas de nutrientes por lixiviação ou erosão. Nesse sentido, solos com mais de 20% de argila, relevo suave ondulado a plano, manejo em plantio direto e permanente cobertura vegetal viva ou morta (palhada) são quesitos que condicionam ambientes mais tamponados e aptos à adubação de sistema.

Diagnósticos apropriados permitem identificar com clareza as prioridades de intervenção para o manejo da fertilidade do solo, indicando quando é oportuno implementar a adubação de sistema, a qual requer algum esforço técnico para análise de contexto e tomada de decisão.

Na ilustração da Figura 1, o gradiente de fundo da cor laranja até a azul posiciona as etapas para estabilizar o sistema e representa uma hierarquização das possíveis situações encontradas, a qual leva à priorização das operações a serem realizadas pelo produtor. Por exemplo, se o monitoramento aponta a necessidade de determinada prática situada na região laranja do diagrama, significa que aquela prática é prioritária em relação a outras situadas nas regiões verde e azul.

O diagnóstico do ambiente de produção é um exercício de reconhecimento da lavoura, envolvendo as seguintes informações:

1 – o estado atual da fertilidade dado pela análise do solo (potencial de reserva e fornecimento de nutrientes, necessidade de práticas de ajuste);

2 – o histórico de manejo (quantidades de corretivos e fertilizantes utilizadas, culturas precedentes);

3 – o desempenho de safras anteriores (produtividades alcançadas e níveis de exportação de nutrientes nas colheitas, gerando déficits ou créditos no balanço de nutrientes);

e 4 – a predição do suprimento e demanda futura de nutrientes, levando em conta a sequência de culturas para os próximos anos (quantidade e relação C/N da palhada, créditos de nutrientes pela sua decomposição, requerimentos nutricionais em função da espécie e da expectativa de produtividade).

2) Fatores ligados aos nutrientes

A dinâmica no sistema solo-planta e particularidades dos nutrientes, assim como dos insumos corretivos e fertilizantes (solubilidade, mobilidade), são condicionantes que devem ser levados em conta ao definir opções para a adubação de sistema.

O calcário distribuído em superfície no SPD tem mobilidade e reação lentas no perfil, requerendo aplicação com grande antecedência, preventivamente, a fim de evitar que o solo volte a ter níveis prejudiciais de acidez.

Uma saída oportuna pode ser posicionar a distribuição precedendo a semeadura de culturas de espaçamento reduzido entre linhas e/ou que apresentem sistema radicular abundante, de modo que a migração do corretivo em profundidade seja facilitada pela ação mecânica dos carrinhos da semeadora e/ou pela porosidade gerada pelas raízes.

A baixa mobilidade do P no solo também interfere na decisão de como fornecê-lo na adubação de sistema, uma vez que, mesmo em ambientes de alta fertilidade, a falta de uma aplicação direcionada pode ser limitante para determinadas culturas, como se verá mais adiante. Nesse caso, é importante conhecer as características de exigência ou responsividade das espécies para decidir como operacionalizar a adubação fosfatada de maneira mais eficiente.

Dentre os macronutrientes primários, o potássio (K) costuma ser o de maior versatilidade no manejo com foco no sistema. Em solos de razoável fertilidade, o seu fornecimento pode ser flexibilizado, com possibilidade de combinar certa dosagem no sulco de semeadura com aplicações a lanço, antecipadas ou em cobertura.

Dentre outras vantagens (ganhos operacionais), a distribuição a lanço elimina eventuais problemas de germinação ou danos às plântulas, decorrentes do efeito salino de fertilizantes potássicos em altas dosagens no sulco.

Ademais, a ciclagem de K dos restos culturais é um processo rápido e que normalmente atende parcela expressiva da demanda do nutriente pelo cultivo subsequente.

Já o manejo do nitrogênio (N) representa um grande desafio na adubação de sistema, devido à alta exigência pelas culturas e disponibilidade modulada por uma dinâmica instável e complexa no solo, sujeita a perdas significativas (volatilização, lixiviação).

Nesse cenário, qualquer antecipação da adubação nitrogenada deve ser baseada em critérios consistentes, em consonância com as condições edafoclimáticas locais (textura, pluviometria) e com os preceitos agronômicos.

Os níveis de matéria orgânica no solo e a presença de leguminosas compondo o sistema como culturas antecessoras são determinantes das quantidades de N necessárias na adubação, bem como da conveniência e momento de parcelamento.

3) Fatores relacionados às culturas

Como é sabido, a cultura mais exigente é que define as metas de fertilidade do solo para o sistema, no tocante à disponibilidade de nutrientes e ao nível de saturação por bases a ser mantidos.

Entretanto, numa fazenda, o emprego de corretivos e fertilizantes é posicionado no cronograma do sistema de culturas geralmente sob interferência de outros fatores, tais como o estrangulamento do parque de máquinas, a logística para atender o timing ideal no calendário agrícola, as oportunidades de mercado na aquisição de insumos e a remuneração de cada cultura.

Na Tabela 1 são apresentados exemplos de soluções possíveis em adubação de sistema, cujo encaixe no esquema operacional da fazenda seria tecnicamente desejável. Assim, as aplicações de manutenção anuais referentes à demanda total do sistema podem ser direcionadas para privilegiar aquelas espécies mais exigentes ou responsivas, como é o caso do algodão, do feijoeiro, do milho (safra de verão) e do trigo.

Não obstante, na prática se verifica que a maior proporção do fornecimento de nutrientes para os sistemas de culturas anuais na Região Centro-Sul é aplicada na safra de verão com soja. Nesse caso, não se trata de uma grande vantagem, haja vista que resultados de pesquisa demonstram que a soja apresenta maior rusticidade e plasticidade em condições variáveis de fertilidade do solo, sendo menos responsiva comparativamente às outras culturas mencionadas.

Na sucessão com milho safrinha, ainda que pese o maior valor agregado da soja, a mudança de conjuntura nos últimos anos envolvendo incremento dos níveis de produtividade e melhor remuneração do cereal leva à necessidade de reflexão e possível reorientação do programa de adubação em prol do milho safrinha. Ou seja, com a evolução produtiva observada, o produtor que sacrifica a adubação do milho corre sério risco de comprometer a sustentabilidade nutricional do sistema como um todo e, em última instância, a sua eficiência técnica e econômica.

Ainda com relação ao papel das culturas componentes do sistema de produção, vale lembrar que a presença de plantas vivas promovendo ampla cobertura e atividade no solo ao longo do ano é um fator que contribui de forma relevante para o sucesso da adubação de sistema. A utilização de plantas de cobertura é, portanto, fortemente recomendada.

A ação de raízes na absorção dos nutrientes aplicados nas adubações, na recuperação daqueles que tendem lixiviar no perfil e na incorporação dos menos móveis no solo faz essas plantas funcionarem como uma “fonte protegida e de liberação gradual”.

Essa é uma via efetiva de se aumentar a eficiência global de aproveitamento de fertilizantes/nutrientes no sistema, que de outra forma ficaria limitada à capacidade expressa pelas culturas comerciais durante o seu ciclo de cultivo. Como já mencionado, sobretudo as gramíneas, cujas raízes são muito ramificadas e alcançam maior profundidade no perfil (Figura 2), têm reconhecida serventia como plantas de cobertura, ou em modalidades de consórcio.

4) Fatores operacionais

A maioria dos técnicos e produtores busca ganhos operacionais com a adubação de sistema, mirando em diminuir o número de entradas de máquinas na lavoura para realizar a distribuição de fertilizantes e ganhar tempo e rendimento na semeadura. Paradoxalmente, a disponibilidade de maquinário e tempo costuma ser limitante para que se tire maior proveito da adubação de sistema.

A adubação a lanço na entressafra pode ser um grande atrativo do ponto de vista operacional, ao proporcionar maior rendimento na semeadura quando chega a época das chuvas ou na janela disponível para semear as culturas de segunda safra. No entanto, trabalhar constantemente com o mesmo modo ou época de aplicação de fertilizante nem sempre é a melhor opção para o sistema.

Ao abrir mão da adubação no sulco, o produtor deve estar consciente de que deixa de usufruir do efeito de arranque proporcionado pela localização próxima à semente, notadamente das fontes com P e N, que conferem maior vigor na fase inicial do desenvolvimento das culturas.

Assim, preferencialmente, uma pequena fração da quantidade total de nutrientes requerida pelo sistema de culturas deve ser distribuída no sulco a cada cultivo. Não sendo possível esse procedimento, pode-se adotar a alternância temporal de talhões para receber alguma adubação no sulco, de acordo com a estrutura e logística da fazenda.

Aferição da adubação de sistema pelo balanço de nutrientes

O uso eficiente de fertilizantes é alcançado quando as perdas de nutrientes do sistema são minimizadas e as quantidades aplicadas se aproximam dos montantes exportados nos grãos colhidos, sem que isso implique em diminuição das reservas de nutrientes no solo para abaixo dos níveis críticos. Nesse sentido, o cálculo periódico do balanço de nutrientes é uma necessidade e um ponto de apoio para ter maior segurança na adubação de sistema.

Um balanço simplificado é dado pela diferença entre o fornecimento (adubação) e a retirada de nutrientes (exportação nas colheitas), podendo também ser calculado de maneira mais detalhada, incluindo outros parâmetros. Esse assunto foi tratado em artigo da Revista Plantio Direto - Edição Especial Centro-Oeste (Out./2020, pag. 18-27), disponível em https://www.plantiodireto.com.br/restrito/upload/popup/arquivo_3.pdf).

Além de permitir detectar a propensão ao desequilíbrio, déficit ou sobra de nutrientes no sistema, o cálculo do balanço também aponta qual cultura pode estar pressionando mais para uma eventual redução das reservas de determinado nutriente no solo. De posse dessas informações, basta redimensionar as adubações futuras ou reposicionar as aplicações para as culturas mais pertinentes.

Pelo exposto neste artigo, verifica-se que não existe receita para a adubação de sistema. Pode ter adoção mais restrita ou mais ampla no âmbito da propriedade agrícola, uma vez que sua efetividade depende primariamente de características de cada nutriente e da composição de espécies no sistema produtivo, exigindo planejamento e bom senso. De qualquer modo, quando o solo apresenta fertilidade estabilizada em níveis desejáveis já é hora de começar a exercitar a adubação de sistema.

Agradecimentos

À Fundação Agrisus (Processo 2484/18), pelo suporte financeiro aos estudos sobre adubação de sistema em solos de fertilidade construída.

1Pesquisador Embrapa Milho e Sorgo. E-mail: [email protected]
2Doutorando Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

Referências

RESENDE, A.V.; FONTOURA, S.M.V.; BORGHI, E.; SANTOS, F.C.; KAPPES, C; MOREIRA, S.G.; OLIVEIRA JUNIOR, A.; BORIN, A.L.D.C. Solos de fertilidade construída: características, funcionamento e manejo. Informações Agronômicas, Piracicaba, n. 156, p. 1-19, dez. 2016.

RESENDE, A.V.; SILVEIRA, P.M.; PRADA NETO, I.; PEDROSO NETO, J.C.; MARTINS, F.A.D. Manejo da fertilidade do solo e nutrição das plantas do feijão-comum. Informe Agropecuário, v. 38, n. 298, p. 14-24, 2017.