Você sabe qual o tamanho da poupança de nutrientes do seu solo? Ou quanto 1 mg/dm3 de P disponível no solo da sua lavoura permite produzir de milho?...E de soja?...Não? Acha que está desinformado? Relaxe, você não está sozinho.
Essa conta seria fácil se fosse simples, mas não é.
Soa provocativo o início desse artigo, mas o intuito é estimular a reflexão diante de reações um tanto exaltadas sobre a problemática de oferta/custo de fertilizantes no Brasil, culminando em comentários de que o Brasil usa adubo em excesso e podemos plantar as próximas safras reduzindo ou até dispensando a adubação.
Essa redução como medida de curto prazo é uma possibilidade concreta para muitos ambientes de produção, mas não para todos. Além disso, temos a pergunta que vale um milhão para o produtor, ou bilhões considerando o agronegócio brasileiro: Por quanto tempo se pode trabalhar com adubação reduzida?
Vamos por partes, tentando ilustrar e exemplificar contextos, sempre que possível numa abordagem quantitativa, estimada com base em conhecimentos da ciência do solo e critérios agronômicos consistentes, devidamente respaldados por cinco décadas de pesquisa agropecuária brasileira.
O solo é o recurso mais valioso numa propriedade rural e, juntamente com a disponibilidade de água, forma o patrimônio maior do produtor, embora nem sempre seja cuidado tendo em vista essa importância.
De todo modo, se hoje é reconhecida a pujança da agropecuária brasileira, é porque muita gente trabalhou duro, durante muito tempo, para construir esse patrimônio nacional.
Como é de conhecimento de todos os que trabalham com a terra, os solos brasileiros não são naturalmente aptos para o uso agrícola e o potencial produtivo atual decorre de anos ou décadas de muito investimento para a correção da acidez e melhoria da sua fertilidade química, buscando também alcançar condições desejáveis de qualidade física e biológica.
Sob esse ponto de vista, as gerações atuais e futuras de produtores, técnicos e demais envolvidos no segmento agropecuário precisam reconhecer e zelar pela poupança de nutrientes que foi constituída pelos pioneiros, sob pena de mais adiante ter o ônus de recuperar solos desequilibrados ou degradados, com gastos maiores do que o normal, e possivelmente numa conjuntura desfavorável de preços dos insumos.
Ou seja, não sabemos bem a magnitude e nem por quanto tempo vai se prolongar a crise de fertilizantes, sendo, portanto, recomendável usar da forma mais eficiente possível as reservas de nutrientes que dispomos nos solos das áreas de cultivo.
O solo como uma conta bancária
Para avançar nesse sentido, primeiramente é preciso entender como funciona a capacidade de armazenamento e de suprimento de nutrientes nos ambientes de produção. Uma forma didática é fazer analogia da camada de 0 a 20 cm do solo a uma “conta bancária” em que os nutrientes são “moeda corrente” (Figura 1).
Na abertura da conta (abertura da área de cultivo) é necessário realizar “depósitos” de nutrientes para se criar um “saldo em conta corrente” (nutrientes disponíveis na análise de solo) suficiente para atender os requerimentos (“saques”) das culturas. Cada solo tem uma certa capacidade de acumular/estocar nutrientes, que corresponde à “poupança” atrelada àquela conta bancária.
As culturas, por sua vez, são capazes de aproveitar os nutrientes da adubação com ganhos compensatórios de produtividade até um certo limite. Esse limite corresponde ao nível crítico ou nível de referência do nutriente que deve ser mantido no solo, acima
do qual não é viável adubar a mais. Quando na análise de solo a disponibilidade de nutrientes e a saturação por bases encontram-se acima dos respectivos níveis críticos (Tabela 1), temos um solo com fertilidade química construída e não há vantagem econômica em investir para aumentar ainda mais a poupança de nutrientes.
Portanto, somente os solos de fertilidade construída é que permitem ter flexibilidade para trabalhar com redução da adubação, sem maior risco de perda de produtividade.
Numa condição de área de cultivo consolidada e bem manejada, analogamente a uma conta bancária estabilizada com boa reserva financeira, a manutenção deve ser feita com adubações (“depósitos”) apenas para repor os nutrientes removidos com as colheitas (“saques”), buscando-se um equilíbrio de entradas e saídas.
Então, para decidir pela redução dos depósitos, substituindo-os pela utilização da poupança, é indispensável que se reconheça o tamanho dessa poupança e como é a dinâmica de suprimento de nutrientes conforme as características e comportamento de cada solo.
O solo de cada lavoura é diferente
Atualmente, os técnicos e produtores já tem uma percepção mais clara de que o solo em cada ambiente de cultivo ou mesmo em subáreas dentro de um mesmo talhão tem características e comportamento peculiares e, por isso, “solos diferentes” não devem ser manejados de forma igual.
Essa visão tem se consolidado na agricultura moderna, que exige gerenciamento mais preciso das lavouras, para assegurar sua competitividade. As diferenças entre solos algumas vezes podem ser até visuais (cor, textura, cobertura de palhada).
Entretanto, há muitas variações e condicionantes importantes que não são aparentes (atributos químicos, físico-químicos e biológicos), mas interferem na resposta ao manejo, definindo níveis diversos de fertilidade atual e futura, assim como de potencial produtivo e de resiliência do sistema.
Enfim, os ambientes de produção seriam como “bancos” distintos, onde as “contas bancárias” (solos) nem sempre funcionam da mesma forma.
Tamponamento da poupança de fósforo
Vamos a exemplos concretos, com o objetivo de ressaltar principalmente as diferenças de poder tampão dos solos, que têm reflexos quantitativos diretos na decisão de reduzir a adubação e por quantas safras isso seria possível. O tamponamento do solo diz respeito ao seu grau de resistência em alterar o estado atual em relação à alguma característica, como por exemplo, aumentar ou diminuir o nível de disponibilidade de um dado nutriente.
Vamos então comparar indicadores para dois solos de Cerrado, um com 60% e outro com 20% de argila, caracterizando condições de maior e menor tamponamento.
Para essas texturas, os níveis críticos de fósforo (P) são em torno de 12 e 20 mg/dm3 na camada de 0 a 20 cm de profundidade, quando se utiliza o extrator Mehlich 1 (Tabela 1).
A capacidade tampão de P dos solos é definida, principalmente, pela proporção e tipo de
minerais de argila, de modo que solos com maior teor de argila e presença de óxidos de ferro e de alumínio, comuns no Cerrado, apresentam elevada adsorção/fixação de P, resultando num forte dreno que compete com as plantas pelo nutriente fornecido na adubação.
As implicações práticas da diferença de tamponamento de P dos solos podem ser melhor compreendidas com os dados de capacidade tampão de P (Tabela 1) e visualizadas nas ilustrações da Figura 2.
Na fase de abertura de área ou construção da fertilidade de solo de Cerrado para o cultivo, são necessários em torno de 50 kg/ha de P2O5 solúvel na adubação para se conseguir aumento de 1 mg/dm3 de P na análise de 0 a 20 cm de solos com 60% de argila e cerca de 6 kg/ha de P2O5 solúvel em solos com 20% de argila.
Ou seja, o solo mais argiloso “resiste” em aumentar o nível de P disponível quando recebe adubação fosfatada, devido, justamente, ao seu maior tamponamento quando comparado ao solo mais arenoso.
Partindo de uma condição natural, onde, tanto para os solos argilosos quanto para os arenosos, é comum se encontrar apenas 1 mg/dm3 de P na análise, são necessárias adubações corretivas com algo próximo de 550 e 115 kg/ha de P2O5 solúvel para se alcançar disponibilidade de P equivalente aos respectivos níveis críticos (Figura 2).
Portanto, o investimento para construir a poupança de P atualmente existente em lavouras sobre solos argilosos foi muito maior do que naquelas sobre solos arenosos, em torno de cinco vezes mais.
Agora vamos ao raciocínio inverso. Como o tamponamento deve atuar tanto em relação ao aumento quanto à diminuição da disponibilidade de P no solo, uma vez consolidada a fase de construção da fertilidade, com a criação de uma poupança por trás do nível de referência (nível crítico), 1 mg/dm3 de P disponível na análise de um solo com 60% de argila corresponde a uma capacidade de suprimento de cerca de 50 kg/ha de P2O5 para a cultura a ser semeada.
Por sua vez, essa quantidade seria equivalente à exportada na colheita de 170 sc/ha de milho, ou 75 sc/ha de soja, ou 110 sc/ha de trigo, ou 90 sc/ha de feijão, ou ainda 300 @/ha de algodão. Já 1 mg/dm3 de P disponível na análise de um solo com 20% de argila corresponde ao suprimento de 6 kg/ha de P2O5 para a cultura nele instalada. Tal quantidade equivale à exportação pela colheita de 20 sc/ha de milho, ou 10 sc/ha de soja, ou 15 sc/ha de trigo, ou 10 sc/ha de feijão, ou 35 @/ha de algodão (Figura 2).
A partir desses indicadores (Tabela 1) e, de posse dos resultados de análise recente do solo, é possível ter ideia de quanto e por quanto tempo se pode usufruir da poupança de P em solos argilosos ou mais arenosos.
Ficam evidentes as variações que existirão entre os campos de produção ao se buscar oportunidades para economizar adubo e como um “manejo às cegas” poderá, em médio prazo, impactar negativamente na fertilidade do solo, no rendimento das colheitas e na própria estabilidade produtiva do sistema de culturas.
Daí a importância, para uma estratégia acertada, de um bom diagnóstico inicial, associado ao balanço de entradas e saídas (“depósitos e saques”) do nutriente a cada safra ou ciclo de rotação, não esquecendo do monitoramento das alterações da disponibilidade no solo por meio de amostragens pelo menos a cada dois anos.
É claro que a dinâmica que ilustramos certamente terá alguma variação devido à interferência de outros fatores além da textura do solo. Porém, mais relevante do que a exatidão dos valores numéricos aqui apresentados, é saber que estamos lidando com ordens de grandeza distintas nos fluxos de P.
O ponto que interessa na prática é que, com a redução da adubação fosfatada de manutenção, um solo mais argiloso sustentará colheitas normais por mais tempo do que um solo mais arenoso. Em outras palavras, na condição de fertilidade construída, a poupança de P dos solos argilosos é mais robusta, confiável e duradoura que a dos solos mais arenosos.
Ao se adotar adubação reduzida por sucessivos ciclos de cultivo, a análise do solo certamente apontará diminuição da disponibilidade de P primeiro num solo arenoso, indicando o esgotamento mais rápido de suas reservas.
O potássio tem outros condicionantes
Vamos demonstrar, a seguir, que a utilização racional da poupança de nutrientes requer não só o reconhecimento das características do solo e das espécies de culturas exploradas, mas também depende do nutriente em questão.
O tamponamento de potássio (K) nos solos de Cerrado não funciona na mesma intensidade constatada para o fósforo e as reservas de K dependem essencialmente da capacidade de troca de cátions (CTC), vinculada às proporções de argila e de matéria orgânica presentes no solo.
Além disso, a quantidade de chuva ao longo do ano interfere diretamente no risco de lixiviação do K fornecido nas adubações. Dessa maneira, solos argilosos, com maiores teores de matéria orgânica e em regiões menos chuvosas tendem a ser mais conservativos, acumulando estoques significativos de K, em comparação a solos arenosos, com menores teores de matéria orgânica e/ou de regiões com elevados índices pluviométricos.
No comparativo de solos de Cerrado com conteúdos de 60% e 20% de argila (Figura 3), os níveis críticos de K indicados na literatura para a camada de 0 a 20 cm de profundidade são da ordem de 80 e 40 mg/dm3, respectivamente (Tabela 1), acima dos quais, atribui-se a condição de fertilidade construída.
Em ambos os casos, para se aumentar 1 mg/dm3 de K disponível na análise de solo nessa camada, é necessário adubar com 2,4 kg/ha de K2O solúvel. Na sua condição natural, solos argilosos de Cerrado costumam apresentar até 40 mg/dm3 de K disponível na análise, enquanto os solos arenosos podem conter 20 mg/dm3 ou menos.
Dessa forma, pensando na etapa de abertura de área, os respectivos níveis críticos são alcançados com aplicações de fertilizantes potássicos para fornecer algo próximo de 100 e 50 kg/ha de K2O solúvel.
Aplicando-se o raciocínio inverso, nas áreas já corrigidas, independendo se a textura seja argilosa ou arenosa, cada 1 mg/dm3 de K disponível na análise de solo corresponde a uma capacidade de suprimento de 2,4 kg/ha de K2O para a cultura instalada.
Isso não representa muito, considerando que essa quantidade equivale aproximadamente à quantidade exportada na colheita de apenas 10 sc/ha de milho, ou 2 sc/ha de soja, ou 10 sc/ha de trigo, ou 2 sc/ha de feijão, ou 10 @/ha de algodão.
Vale notar que leguminosas como a soja e o feijão acabam removendo proporcionalmente mais K nos grãos do que espécies gramíneas, como o milho e o trigo, sendo o cultivo das primeiras mais esgotante do K do solo, portanto (Figura 3).
Considerando os atuais níveis de produtividade obtidos nas principais culturas no Cerrado, conclui-se que, a adoção recorrente de adubação reduzida fará com que a poupança de K no solo se esgote bem mais rapidamente que a de P, independentemente do ambiente de produção. Assim, as análises para o monitoramento dos solos que receberem essa adubação subótima mostrarão oscilações mais rápidas, bruscas e significativas na disponibilidade do K, em comparação ao P.
Não resta dúvida também de que os solos arenosos sob adubação potássica reduzida, em quantidades abaixo da exportação
desse nutriente nas colheitas, poderão sustentar produção satisfatória das culturas por muito pouco tempo.
Por outro lado, devido à dinâmica mais simples que a do P, é mais fácil corrigir os níveis de K no solo quando constatada disponibilidade aquém dos valores de referência (Tabela 1), de modo que não haja comprometimento da produtividade futura.
Experiência de manejo em fazenda
Os raciocínios aqui apresentados, envolvendo inferências sobre o tamponamento, dinâmica e fluxos de P e K na interação adubação/solo/cultura, foram validados em ambiente de fazenda em Unaí – MG, num solo de fertilidade construída e sob plantio direto, durante o período de 2018 a 2021, envolvendo três ciclos safra/safrinha, com a sucessão soja/sorgo/soja/milho/soja/milho.
O Latossolo Vermelho Amarelo apresenta 3,8% de matéria orgânica na camada de 0-20 cm e teores de 47 e 65% de argila de 0-20 e de 20-40 cm no perfil. Durante os seis cultivos foram aplicados três manejos de adubação NPK:
1) Controle – sem nenhum fornecimento de N, P e K nas adubações de base ou cobertura;
2) Adubação de restituição – sempre repondo as quantidades de P e K exportadas na colheita do cultivo antecessor, sendo o N para o sorgo e o milho dimensionado conforme a produtividade esperada; e
3) Adubação da fazenda – seguindo a experiência e critérios próprios do produtor.
Na Figura 4 são apresentados os resultados de produção acumulada de grãos dos seis cultivos e os dados cumulativos de entradas de nutrientes via adubação e saídas via exportação, em equivalentes P2O5 e K2O.
Houve menor produção global do sistema no tratamento controle, atribuída principalmente à ausência de fornecimento do N nos cultivos de sorgo e milho, uma vez que o rendimento dos cultivos de soja não foi afetado. Ainda assim, pode-se considerar que a amplitude de produção entre os três tratamentos, com diferença máxima de 20%, foi atenuada por tratar-se de um ambiente bastante tamponado, com reservas suficientes para atender a maior parte da demanda dos cultivos.
A produção com adubação de restituição não diferiu da obtida com a adubação da fazenda. Nota-se, entretanto, que o manejo da fazenda envolveu aplicação de fósforo em quantidade bem acima da exportação nos grãos colhidos. No caso do potássio, o manejo da fazenda praticamente coincidiu com o critério da adubação de restituição.
Os efeitos dos três manejos/tratamentos no balanço (adubação menos exportação) de fósforo e de potássio no período compreendido no estudo, e sua relação com a disponibilidade desses nutrientes no solo após os seis cultivos, podem ser observados na Figura 5.
Obviamente, a completa ausência de adubação no tratamento controle resultou em balanços negativos, com consequente diminuição na disponibilidade de P e K no solo, comprovando que a produção de grãos se manteve relativamente satisfatória (Figura 4) mediante a “mineração”, pelas culturas, das reservas de nutrientes preexistentes no solo.
No caso do fósforo, constatou-se estreita relação do balanço entre adubação e exportação com a disponibilidade do nutriente na camada de 0-20 cm do perfil, em que cada mg/dm3 de P na análise correspondeu a 47,5 kg/ha de P2O5 no balanço (Figura 5).
Este valor está bem alinhado com o indicador da literatura sobre a capacidade tampão de P de solos mais argilosos do Cerrado (50 kg/ha de P2O5 para cada 1 mg/dm3 de P na análise) e confirma a validade do que foi apresentado (Figura 2) e discutido anteriormente neste artigo.
Vale destacar ainda que a adubação baseada na restituição das quantidades de P exportadas nas colheitas mostrou ser uma estratégia de manejo efetiva para manter o potencial produtivo do sistema, preservando a condição de fertilidade construída do solo e mantendo um balanço mais próximo da neutralidade, sem déficit ou excedente, cenário ideal para se alcançar alta eficiência no uso de fertilizantes.
Já para o potássio, tanto a adubação de restituição quanto a adubação da fazenda resultaram num pequeno excedente no balanço após os seis cultivos, enquanto o controle acumulou déficits que implicaram em intensa redução de disponibilidade de K na camada de 0-20 cm.
A relação do balanço entre adição e remoção com a disponibilidade no solo, indicou uma correspondência de 6,4 kg/ha de K2O para cada mg/dm3 de K na análise (Figura 5), valor acima do indicador de referência da literatura, de 2,4 kg/ha de K2O (Figura 3).
Essa diferença pode ser atribuída, sobretudo, à contribuição do estoque de potássio presente abaixo de 20 cm no perfil para a nutrição das culturas, bem como ao processo de ciclagem, especialmente pelo sorgo e pelo milho, que desenvolvem sistemas radiculares profundos e têm alta capacidade de acumulação de K, mas exportam proporcionalmente pouco, em torno de 25% do que extraem.
Esses fatores combinados certamente contribuíram para retardar o esgotamento do K da camada mais superficial, condicionando a relação balanço/disponibilidade encontrada na lavoura em questão.
Essa experiência no ambiente de lavoura em solo de fertilidade construída permitiu atestar a importância de se conhecer as diferenças inerentes à dinâmica de cada nutriente, em associação ao reconhecimento/monitoramento de como o solo se comporta frente ao manejo de adubação aplicado ao longo do tempo, bem como o papel das espécies que compõem o sistema de produção.
No talhão estudado é seguro trabalhar estrategicamente com adubação reduzida de P e K, mesmo em níveis abaixo da exportação na colheita, por um ou mais cultivos, visando melhor equilíbrio financeiro em momentos como o da atual pressão de alta no custo dos fertilizantes.
Contudo, é indispensável que tal decisão esteja atrelada à utilização das ferramentas de balanço de nutrientes e de monitoramento da fertilidade por análise periódica de solo, para que o produtor possa antever os impactos e proceder à necessária recalibração das adubações na hora certa, tendo como meta preservar a condição de fertilidade construída e a estabilidade produtiva.
O nitrogênio permanece uma caixa de surpresas
Discutir sobre manejo da fertilização nitrogenada em sistemas de produção é um desafio e tratar das possibilidades de redução do fornecimento de nitrogênio (N) na adubação envolve grande complexidade e nuances a ponderar, considerando uma série de aspectos peculiares a cada área de cultivo.
Assim, não cabe propor aos produtores planos de manejo padronizados do N, mas chamar atenção para os principais pontos a serem levados em conta na tomada de decisão:
Apesar de muita pesquisa já conduzida e em andamento, ainda não existem, no Brasil, métodos de análise de solo que possam ser adotados em rotina para diagnóstico da disponibilidade de N nas lavouras. Diferentemente do P e K, o abastecimento do solo com N pode ter contribuições oriundas da atmosfera, um compartimento externo, aberto, abundante e renovável, mas a magnitude dessas contribuições depende da intermediação de determinados microrganismos que promovem a fixação biológica (FBN). Por outro lado, uma vez no solo, o N estará constantemente sujeito a uma gama de processos de transformação que podem resultar em perdas de intensidade variável por volatilização ou lixiviação.
A utilização de sensores de plantas para monitorar o estado nutricional das culturas em relação ao N exige acompanhamento técnico especializado, sejam sensores portáteis/manuais, acoplados ao maquinário da fazenda, embarcados em drones, aeronaves ou satélites. Além disso, a maioria dos modelos matemáticos para o dimensionamento da adubação nitrogenada baseado em sensoriamento encontra-se ainda em desenvolvimento/aperfeiçoamento, de modo que sua efetiva aplicação no cotidiano das fazendas deverá ocorrer no futuro. É certo também que sua aplicação, como tecnologia isolada, não seja suficiente para cumprir o objetivo de uso mais eficiente e sustentável do N na agricultura tropical.
A matéria orgânica (MO) é o principal reservatório de N no solo, devendo-se adotar as boas práticas para manutenção e, se possível, aumento do seu teor (ex: controle da erosão, plantio direto, inserção de outras leguminosas além da soja no sistema, adubação nitrogenada de culturas não-leguminosas de acordo com a sua real demanda, etc.). O potencial de suprimento de N é diretamente proporcional ao acúmulo de MO no solo, que, por sua vez, depende da textura (Tabela 1) e das condições climáticas (temperatura e pluviometria), além, é claro, da quantidade e qualidade dos restos culturais (palhada) adicionados pelo sistema de culturas estabelecido na área. Em geral, solos com maior conteúdo de argila, em regiões de clima subtropical ou temperado, com aporte de grande quantidade de restos culturais ou outros resíduos orgânicos, e em sistemas com mais presença de espécies leguminosas, são mais aptos a acumular MO, apresentando níveis mais elevados desse atributo na análise de fertilidade.
A partir do resultado de MO na análise do solo, é possível estimar quanto de N poderá ser liberado por mineralização para a cultura a ser implantada (ex: 12 kg/ha de N disponibilizado ao longo de um cultivo, para cada 1% de MO na análise do solo). No entanto, estimativas mais confiáveis são obtidas como resultado de experimentação em âmbito local. Assim, a consulta à literatura específica de cada região é importante na escolha desse índice, para então contabilizar a contribuição da MO dentre os critérios para o dimensionamento da adubação nitrogenada.
O cultivo de leguminosas (soja e outras) fornece créditos adicionais de N ao sistema, derivados da simbiose com bactérias que realizam o processo de FBN. Desse modo, as culturas que vêm em sucessão são beneficiadas, sendo menor o requerimento de N na forma de fertilizante. Um exemplo típico é o da dobradinha soja/milho safrinha no Cerrado. Nesse caso específico, mesmo contabilizando a estimativa de créditos oriundos dos restos culturais da soja, algo próximo de 15 kg/ha de N por tonelada de soja produzida, mais a contribuição da MO do solo, a quantidade de N que o sistema pode prover ao milho é insuficiente para manter os patamares produtivos atuais sem a utilização de fertilizantes. Essa situação é ilustrada na Figura 6, que sintetiza um estudo de resposta a N pelo milho safrinha em seis ambientes do Cerrado, em regiões produtoras de Goiás, Mato Grosso e Rondônia. A dose média econômica foi de 90 kg/ha de N (na forma de ureia comum), quantidade similar à adotada por muitos produtores. No entanto, mesmo simulando uma situação com 100% de aproveitamento do fertilizante pelo milho, essa quantidade não é suficiente sequer para repor o exportado nos grãos colhidos (Figura 6). Portanto, a opção por reduzir a adubação nitrogenada acaba por gerar déficit no balanço de N e a recorrência nesse manejo pode levar à diminuição da matéria orgânica e à perda de potencial produtivo do sistema soja/milho safrinha.
Por fim, o produtor pode realizar adubações nitrogenadas mais eficientes na medida em que considera as características dos diferentes fertilizantes disponíveis no mercado e, uma vez escolhida a fonte de N, a utiliza seguindo as respectivas orientações técnicas de momento e modo de aplicação, dentre outros cuidados para minimizar o risco de perdas de N e potencializar seu aproveitamento pelas plantas.
Considerações finais
A mensagem principal desse artigo é que, em cenário de alta do preço e escassez de fertilizantes, um bom diagnóstico pode indicar a possibilidade de usar a poupança de nutrientes do solo no curto prazo, gastando menos com adubos.
Todavia, prosseguir com uma estratégia de adubação reduzida contínua, sem o devido monitoramento/conhecimento para balizar o manejo de longo prazo, exaurindo essa poupança, é atitude temerosa.
Também não é aconselhável buscar a substituição dos fertilizantes convencionais pela utilização de práticas, insumos ou tecnologias de eficiência desconhecida, o que equivale a manejar com base em “palpites”.
Não se pode perder de vista que, mesmo que uma fonte ou prática de manejo de um dado nutriente apresentasse 0% de perda no sistema (o que é improvável) e 100% de aproveitamento pelas plantas, existe uma regra primária ligada à quantidade de nutriente entregue. É simplesmente uma questão aritmética.
Se a quantidade fornecida do nutriente (“depósito”) for menor do que a removida na colheita (“saque”), a sobrevida do sistema se dará às custas das reservas do solo (“poupança”).
Assim, qualquer intervenção visando racionalizar ou até mesmo suprimir a utilização de fertilizantes deve ser decidida de forma lúcida e consciente, antevendo os impactos sobre a produtividade das lavouras e a fertilidade do solo, tanto em curto quanto em médio-longo prazos. Agindo assim, técnicos, consultores e produtores terão maior segurança e controle dos riscos envolvidos.
Agradecimentos
À Fundação Agrisus (Processo 2484/18) e à Embrapa (Projeto 20.18.03.026.00.04.004), pelo suporte financeiro aos estudos sobre adubação de sistema em solos de fertilidade construída.
À Fazenda Decisão, pela cessão de área de lavoura e imprescindível apoio operacional na condução de experimentos on farm.
Referências
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