Ruído na avaliação da fertilidade do solo e desafios a sua caracterização


Autores: Margarete Nicolodi; Clesio Gianello
Publicado em: 31/08/2017

Introdução

A interpretação de níveis adequados ou altos na avaliação da fertilidade do solo tem correspondido à baixa produtividade das culturas em lavouras cultivadas há anos em sistemas conservacionistas e também alta produtividade tem sido obtida em solos com fertilidade avaliada como baixa. Uma pequena margem de erro ou ruído na avaliação da fertilidade sempre existiu, é aceita e considerada também na definição das quantidades recomendadas de corretivos e adubos. O ruído pode ser verificado em diversas etapas da avaliação.

A surpresa está na constatação de que a magnitude do ruído é maior na avaliação de solos cultivados no sistema plantio direto (SPD) do que no preparo convencional (PC) a ponto de comprometer a confiabilidade nas recomendações. Esse fato torna-se relevante por serem essas práticas fundamentais tanto para a conservação dos solos como para o agronegócio, assim como, para a credibilidade nos diferentes sistemas de avaliação e de recomendação oficiais (de corretivos e de adubos) elaborados e adotados nas distintas regiões do Brasil.

A avaliação da fertilidade é baseada na teoria mineralista, que restringe a fertilidade às condições químicas e tem como centro lógico não mais a fertilidade do solo, mas a nutrição balanceada das plantas. É provável que esse desvio de foco também tenha contribuído para a insuficiência da teoria mineralista em expressar a fertilidade percebida pelas plantas verificada em solos cultivados no SPD (Nicolodi et al., 2008).

Certamente, a mudança do sistema de preparo e cultivo do solo do PC para o SPD promoveu também a melhoria das condições físicas e biológicas, além das químicas, e isso proporciona melhor desenvolvimento e maior produtividade das plantas. Todavia, espera-se que a avaliação da fertilidade seja capaz de expressar com alta confiabilidade pelo menos a disponibilidade de nutrientes e o grau de acidez ou neutralidade, no caso dos solos brasileiros, e a relação desses com a produtividade das espécies cultivadas.

É importante a noção exata do grau da interferência do aumento do ruído na avaliação, para saber se é suficiente adaptá-la ou se é necessário desenvolver uma nova metodologia de avaliação, a partir de outro conceito de fertilidade, para o cultivo do solo no SPD. A adequação (ou os ajustes finos) das práticas agrícolas recomendadas também depende da identificação das causas dos ruídos em cada etapa da avaliação e das soluções possíveis reduzindo-o novamente à margem aceitável, para que a fertilidade avaliada seja mais próxima daquela fertilidade que é percebida pelas plantas.

Os objetivos desse artigo, baseado em resultados obtidos por diversos pesquisadores, são:

a) identificar as principais fontes de ruído da aplicação da teoria mineralista em solos cultivados por longo período no SPD;

b) avaliar a eficácia de algumas tentativas para diminuir o ruído na avaliação da fertilidade;

c) individuar os principais desafios à caracterização da fertilidade percebida pelas plantas principalmente quando cultivadas em solos conduzidos por mais de 15 anos em sistemas conservacionistas, como o SPD.

O artigo foi estruturado em três partes, a primeira e a segunda centradas nas causas do ruído e tentativas para diminuir a magnitude dele mantendo a atual metodologia de avaliação, ilustrando a problemática com resultados de campo obtidos por diversos pesquisadores, e a outra abordando os desafios à caracterização daquela percebida pelas plantas.

Ruído na avaliação da fertilidade em solos cultivados no SPD

A existência de ruído pode ser verificada nas diferentes etapas da avaliação da fertilidade: na amostragem de solo e nas determinações químicas, na calibração e na interpretação dos resultados das análises. No PC de cultivo, é muito raro se observar altos rendimentos quando os indicadores tradicionais de fertilidade (pH, P, K e MO) são baixos ou quando o teor de Al trocável é alto.

No entanto, nos últimos anos, inúmeros resultados de experimentos e de lavoura têm mostrado isso em sistemas conservacionistas como o SPD. Embora muitos pesquisadores em fertilidade do solo atribuam essa incoerência entre o nível de fertilidade avaliado e a produtividade obtida a casualidades, os autores atribuem ao efeito do tempo de cultivo do solo sob SPD.

O ruído na avaliação da fertilidade sempre existiu, porém, a sua magnitude aumentou no SPD devido a inúmeros fatores isolados ou por efeito em cascata em que a alteração de um fator influencia uma série deles, geralmente não considerados na sua avaliação (Nicolodi, 2006). A avaliação da fertilidade em solos cultivados no SPD é feita com base no sistema construído para o PC.

O aumento da magnitude do ruído na avaliação de um mesmo solo cultivado por mais de 15 anos no PC, quando cultivado no SPD se deve ao sistema de preparo e cultivo e ao tempo de SPD, que influenciam as características e propriedades do solo, assim como as relações entre estas e a produtividade das plantas (Nicolodi, 2007a). Entre os principais fatores, talvez o mais importante por desencadear uma série de eventos, é o não revolvimento do solo, ou melhor, o revolvimento apenas na linha de semeadura.

Com essa prática, a palha é mantida na superfície, a aplicação de fertilizantes é feita na linha de semeadura e o calcário é aplicado na superfície não é incorporado ao solo. Assim, o não revolvimento propicia alteração significativa na estrutura e nos gradientes dos indicadores químicos e biológicos do solo. Também contribuem significativamente, a diversificação das espécies cultivadas na rotação e a maior quantidade de palha produzida anualmente, que permanece no solo. Isso altera o tipo de relação e o seu efeito sobre o desenvolvimento e a produtividade das plantas.

Ao comparar esses dois sistemas, se observa que no caso do PC, o solo retorna ao mesmo estado a cada seis meses (se forem feitos dois cultivos por ano). No tempo, as condições físicas e biológicas permanecem muito semelhantes, sendo alteradas somente as químicas pela adubação e pela calagem (Nicolodi, 2007a). No SPD, as mudanças nas condições físicas, biológicas e químicas, pela ausência de perturbações significativas, evoluem melhorando com os anos de cultivo do solo nesse sistema.

É bem possível que os benefícios desse sistema conservacionista, tanto para o solo como para o desenvolvimento das plantas, não sejam contemplados pela avaliação isolada das condições químicas do solo e sejam percebidos na avaliação tradicional como ruído. Esse ruído pode induzir a erros nas recomendações de calagem e de adubação, dificultar a interpretação do potencial produtivo da área e diminuir a confiabilidade na avaliação da fertilidade.

A dificuldade na interpretação também é verificada quando são avaliados resultados obtidos em mesma área ou parcelas (no caso de experimentos) por vários anos; muitas vezes a variação no rendimento obtido de grãos parece não ter relação direta ou dependência dos teores ou valores dos indicadores de fertilidade (Figura 1).

Todavia, atualmente a análise química de amostras de solo é uma ferramenta fundamental para o diagnóstico da fertilidade e, segundo a teoria mineralista, existe uma relação direta entre a disponibilidade de nutrientes no solo e a produtividade das culturas. Os resultados obtidos nas avaliações feitas no solo cultivado no PC e no SPD, durante mais de 20 anos num experimento conduzido na Embrapa Trigo, em Passo Fundo-RS mostram esse comportamento nas relações entre indicadores de fertilidade e rendimento de grãos (Figuras 1).

A evolução dos principais indicadores da fertilidade (P, K, pH e MO), determinados nas amostras coletadas na camada de 0-20 cm de profundidade, e do rendimento de grãos de soja (Figuras 1a e 1b) expressa a baixa capacidade dos indicadores em avaliar a fertilidade que é percebida pelas plantas, inclusive no PC.

Isso também foi verificado nos experimentos de longa duração avaliados em Santo Ângelo e em Eldorado do Sul (Nicolodi, 2007a). Em Passo Fundo, a precipitação pluviométrica foi a principal determinante do rendimento da soja (Figura 1 c) e, como já dizia o Dr. Sírio Wiethölter, da Embrapa Trigo, Passo Fundo: a água é o principal nutriente das plantas!

Então, sendo essa afirmativa verdadeira, deveria ser natural preconizar a adoção das práticas que melhoram a infiltração e a disponibilidade de água no solo – decisivas na expressão do máximo potencial produtivo das plantas – assim como se faz com calagem e adubação. Entretanto, nesse artigo, vamos nos concentrar em reconhecer as fontes de ruído e minimizar as suas consequências na avaliação e nas recomendações. O ruído na amostragem sempre existiu e já foram desenvolvidos procedimentos que podem solucionar, em parte, o problema, porém são muito laboriosos.

A novidade é que a magnitude desse aumentou devido à formação de gradientes verticais e horizontais de concentração de nutrientes e de pH. Nesta etapa, ele pode ser corrigido ou diminuído. Para isso, no SPD recomenda-se maior atenção ao sítio de coleta (representar o volume de solo que será explorado pelas raízes, considerando a concentração de nutrientes nas linhas e a diluição nas entrelinhas) que no PC.

O número mínimo de subamostras indicado nas recomendações deve ser observado o uso de equipamentos que perdem a camada superficial e coletam pequeno volume de solo deve ser evitado. A coleta de solo com trado de rosca (Schlindwein & Anghinoni, 2002), trado calador (Nicolodi et al., 2002) ou trado holandês (Salet et al., 2005) gera um ruído muito maior que a coleta com pá-de-corte. Outro aspecto que demanda atenção é a camada amostrada, os resultados serão interpretados corretamente somente se as subamostras forem coletadas na camada usada ou ajustada no processo de calibração.

Por exemplo, no RS existem tabelas para interpretar os resultados de análise feita em amostra de solo composta por subamostras coletadas nas camadas de 0-10 cm ou de 0-20 cm, porém não foram estabelecidos limites de referência (isto é: não foi feita calibração) para interpretar resultados de amostras coletadas de 0-15 cm de profundidade.

Logo, a magnitude do ruído aumenta principalmente se a amostragem não for adequada à condição da lavoura, superando as margens de erro em torno da média aceitas, geralmente de 20% (erro máximo admitido na definição do número mínimo de subamostras), tornando a recomendação ainda menos confiável. Se as subamostras forem coletadas de 0-15, 0-12, 0-7 cm, etc. e/ou coletada de modo diferente do que recomendado, o resultado tem pouca utilidade para fins de recomendação (definição de quantidades que deveriam ser aplicadas de corretivo de acidez e de adubo) e, talvez, nem compense investir na análise daquela amostra de solo.

Logicamente, os métodos não “imitam” exatamente a capacidade da planta de absorver os nutrientes do solo durante a extração das soluções e as determinações laboratoriais, mas são selecionados/desenvolvidos para fazer isso do melhor modo possível. A maioria dos métodos usados em análises de solo atualmente tem mais de trinta anos e, nesse período, também evoluíram muito a tecnologia e a sensibilidade dos equipamentos.

Ao ruído gerado pela metodologia se soma aquele causado pela agregação do solo, que era muito baixo nas amostras coletadas em áreas cultivadas no PC. Essa é uma das vantagens do SPD bem conduzido, mas é ignorada na avaliação. Um solo em repouso ou cultivado no PC tem menor proporção de agregados nas classes de diâmetro maior (2,00- 4,76 e >4,76 mm) do que um no SPD, com mata ou com pastagem.

Quanto maior o número de espécies utilizadas na rotação de culturas e a quantidade e a qualidade do material orgânico adicionado ao solo melhor será a sua agregação para um mesmo sistema de cultivo. Embora a agregação melhore o ambiente para a vida das plantas (disponibilidade e acesso aos nutrientes e água, etc.), aumenta a magnitude do ruído, porque o sistema de avaliação da fertilidade foi desenvolvido para avaliar o solo revolvido, totalmente desagregado.

A primeira etapa da metodologia para as determinações químicas no laboratório é a destruição total da estrutura da amostra por moagem mecânica do solo. A análise se processa sempre em amostras moídas e tamisadas em peneiras com malha de 2 mm de diâmetro. Por isso, num solo com maior porosidade e melhor estruturado, há menos massa sólida num mesmo volume no campo do que depois de moído e tamisado no laboratório.

Por consequência, nessa condição, o resultado da análise da amostra será um valor maior de nutriente, o que não corresponde à realidade no campo. Essa diferença é considerada um ruído na avaliação. Para a planta, o maior espaço poroso no solo é vantajoso para o seu desenvolvimento e absorção dos nutrientes. Assim, um mesmo valor de um indicador, determinado quimicamente num solo melhor estruturado e com maior atividade biológica, tem efeito diferente sobre as plantas do que num solo compactado, cuja atividade biológica provavelmente é baixa (Figura 2).

O aumento do ruído nessa etapa da avaliação prejudica diretamente a interpretação dos resultados, diminui a confiabilidade nas recomendações, na dependência do fornecimento de uma determinada quantidade do nutriente ‘x’ via adubação, por exemplo, e também a credibilidade dos sistemas de recomendação oficiais.

Interpretando o resultado de análises de duas amostras de um mesmo solo cultivado há 15 anos no SPD na região oeste do RS, uma coletada em área com rotação de culturas e adição anual de palha de 12 toneladas por hectare (A) e outra numa área de cultivo de soja no verão e pastoreio no inverno com adição anual de quatro toneladas de palha por hectare (B), recomendar-se-ia a mesma quantidade de adubação, de correção mais a de manutenção, para aplicar nas duas áreas, pois são consideradas somente as condições químicas do solo na noção mineralista da fertilidade.

Entretanto, apesar de elas apresentarem teor do nutriente ‘x’ igual a 5 (Figura 2), é provável que as plantas tenham um melhor desenvolvimento, absorvam mais nutrientes e produzam mais na área onde foi coletada a amostra A do que na área B. Não existe, ainda, uma solução para o problema, nem tampouco estão sendo conduzidos estudos relacionados a esse tópico.

Isso também implicará em mudanças na metodologia de amostragem e de manuseio do solo e nova calibração. Na etapa da calibração, são definidos os teores críticos e os limites das faixas de interpretação dos indicadores de fertilidade com base na dispersão natural dos pontos que representam os locais avaliados. No caso da calibração de P, o ruído verificado há mais de 40 anos, nas curvas de resposta obtidas entre 1966 e 1969 no Rio Grande do Sul, com trigo e soja (Figura 3a) cultivados no PC, mesmo após a separação dos pontos em grupos conforme as classes texturais, já era alto.

Observa-se, pela dispersão dos pontos, que para um teor de 5 mg dm-3 de P nos solos argilosos, por exemplo, foram obtidos rendimentos relativos muito diferentes, próximos a 40%, a 65% e a 80% do máximo (Figura 3a). Esse tipo de também é verificado nos estudos conduzidos no estado de São Paulo (Raij, 1974), cultivando soja, milho e algodão no PC (Figura 3b); com aproximadamente 1 mmolc dm-3 de K foi obtido rendimento relativo de aproximadamente 55, 75 e 100 % de cana-de-açúcar.

A esse ruído da calibração — características específicas de cada solo, entre elas MO, das condições ambientais e das variedades utilizadas nas safras avaliadas — somam-se nos solos cultivados no SPD, principalmente, as influências das diferentes espécies cultivadas nas rotações e das relações construídas com o tempo de cultivo, que interferem nas relações entre o rendimento relativo e o teor dos nutrientes determinados quimicamente nas amostras de solo.

Contudo, esses fatores não foram considerados no estabelecimento do teor crítico e na distribuição das faixas de interpretação adotadas pela Comissão de Química e Fertilidade do Solo para as recomendações de adubação (CQFS RS/SC, 2004 e 2016), uma vez que no RS continua sendo utilizada a calibração feita no PC.

A dispersão dos pontos na calibração de P em solos cultivados no SPD continua mostrando o quanto a resposta das plantas é variável em função de um nutriente, independente do método de determinação utilizado, Mehlich 1 (Figura 4), Mehlich 3 ou Resina Trocadora de Íons ou separação por classe textural (Schlindwein, 2003). Comportamento semelhante pode ser observado nos estudos recentes conduzidos em diferentes culturas em SPD no Paraná, com disponibilidade de P e K disponíveis avaliados em duas camadas de solo (Figura 5; Vieira et al., 2013).

A distribuição desses conjuntos de pontos (Figuras 4 e 5) indica que o rendimento relativo máximo está relacionado a um determinado teor de nutriente no solo, porém, a magnitude do ruído está muito alta e gera incertezas na definição do teor crítico, no estabelecimento das faixas de interpretação dos resultados para as análises de solo e, consequentemente, na avaliação da fertilidade dos solos cultivados no SPD.

Nas curvas de respostas obtidas nos solos do PR (Vieira et al., 2013), observa-se ainda, com preocupação, o fato de terem sido avaliados poucos “pontos” com teores de P e K menores que os teores críticos nas culturas de milho e de soja (Figuras 5c, 5d, 5g e 5h). Essa pode ser mais uma fonte de ruído na definição dos teores críticos e das faixas de interpretação, diminuindo a confiabilidade nos valores e limites estabelecidos a partir deles.

A magnitude dos ruídos nas etapas da amostragem, da determinação no laboratório e da calibração se soma na etapa de interpretação dos resultados e pode afetar decisivamente as recomendações. Todavia, é importante quantificar a magnitude daquela fertilidade percebida pelas plantas; ou seja, aproximar ao máximo a nossa avaliação da fertilidade daquela que a planta percebe, a qual ela responde em produtividade maior ou menor.

Na prática, com a mudança do sistema de cultivo do PC para o SPD tem se verificado ruído de maior magnitude na avaliação da fertilidade (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007a, b).

Por isso, são muito importantes as respostas para a questão fundamental em duas situações: a magnitude da fertilidade do solo percebida pelas plantas é igual quando a avaliação é feita ... (situação a) na mesma espécie, num mesmo solo com valores iguais dos indicadores de fertilidade, numa área cultivada no PC e noutra num sistema conservacionista como o SPD? ... (situação b) na mesma espécie, num mesmo solo cultivado no SPD com valores iguais dos indicadores de fertilidade, numa área com a combinação ‘y’ de espécies e noutra com a combinação ‘z’ de espécies na rotação de culturas?

As respostas possíveis são: ‘sim’ (se a magnitude for igual) e ‘não’ (se a magnitude for diferente).

Todavia, é importante refletir com atenção, pois responder ‘não’ significa fazer uma interpretação errada da fertilidade percebida pelas plantas ou, admitir que o ruído na avaliação da fertilidade é de tal magnitude que diminui a confiabilidade na avaliação a ponto de ser indiferente interpretar a fertilidade como alta ou como baixa.

Contudo, essa ferramenta (a avaliação da fertilidade) é essencial para definir a quantidade e os elementos que devem ser adicionados/restituídos ao solo e, principalmente, para melhorar e conservar o solo possibilitando a produção sustentável de alimentos, fibras e energia. Os resultados obtidos em dois experimentos, conduzidos por mais de 20 anos em Eldorado do Sul indicaram claramente que é ‘não’ a resposta para a questão fundamental, tanto na situação a como na situação b (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007b).

A alta magnitude do ruído na avaliação ficou evidente comparando a interpretação da fertilidade avaliada e a percebida pelas plantas, ou seja, o rendimento de grãos obtido em inúmeras combinações de sistemas e rotações (Nicolodi et al., 2008). A inadequação de alguns indicadores, considerados imprescindíveis no PC, para avaliar a fertilidade do solo no SPD pode ser observada nas relações entre os indicadores tradicionais da fertilidade e o rendimento de grãos avaliados em lavouras (Figura 6) e em experimentos (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007a).

Iguais valores de um indicador apresentaram efeitos diferentes sobre a planta conforme o tempo e o sistema de preparo e cultivo, inclusive sob irrigação. Isso pode ser verificado, por exemplo, nos resultados obtidos nas parcelas cultivadas com ervilhaca e milho adubadas 180 kg de N por ha, em que a fertilidade do solo é avaliada como baixa devido a alta acidez (4,8 de pH e > 1,0 cmolc dm-3 de Al trocável), gerando produtividade média no PC (6,9 t ha-1) e alta no SPD (9,4 t ha-1).

Segundo a noção mineralista o que ocorreu, produzir tanto em condições inadequadas, é impossível. Noutros exemplos, a fertilidade foi avaliada como alta e a produtividade obtida no SPD 65% maior que no PC, 9,4 t ha-1 e 5,7 t ha-1 respectivamente. Teoricamente não poderíamos obter esta diferença na produtividade, pois os valores dos indicadores da fertilidade são muito semelhantes nos dois casos.

Noutros exemplos de parcelas cultivadas com consórcio de aveia e ervilhaca seguido pelo de milho e caupi e com o cultivo de guandu e seguido por milho no SPD, com fertilidade avaliada como baixa a produtividade obtida foi alta, ou seja, a fertilidade percebida pelas plantas foi alta (Nicolodi et al., 2008). A principal diferença entre estes pontos é o histórico de cultivo, pouco considerado na avaliação da fertilidade.

Os resultados indicam que a magnitude da fertilidade do solo percebida pelas plantas é diferente conforme o sistema de cultivo e a rotação de culturas e que a avaliação química desenvolvida em solos cultivados no PC, derivada da teoria mineralista, é insuficiente para expressar as diferenças na magnitude da fertilidade percebida pelas plantas em solo cultivado por longo período no SPD (Nicolodi, 2007a; Nicolodi et al., 2008). O fato de o nível de fertilidade determinado não corresponder a produtividade esperada, quando o desenvolvimento das plantas não é limitado por deficiência hídrica, tem sido ignorado ou atribuído ao aumento da magnitude do ruído nas etapas da avaliação da fertilidade.

A magnitude do ruído na fase de interpretação associada ao histórico de cultivo também pode ser visualizada nos resultados obtidos por Fiorin (2008) em experimento instalado em 1997, em área cultivada há 11 anos no SPD (após 25 anos de cultivo no PC, com sucessão trigo/soja) em Cruz Alta-RS. Aos resultados de campo obtidos nas avaliações feitas no 1º, 6º e 10º ano de condução do experimento (que correspondem ao 1º, 3º e 5º ciclo de rotação de culturas, respectivamente; somente a vica foi adubada até o 4º ciclo em duas rotações) foram sobrepostas, na Figura 7, as faixas de interpretação da disponibilidade de P e K disponíveis adotadas no Manual de Adubação e Calagem (CQFS RS/SC, 2004).

A distribuição dos resultados obtidos na primeira avaliação indica que o ruído (mesmos teores de P e K se obtém entre 40 e 100% do rendimento relativo) parece ser devido às diferenças entre as rotações de culturas, isso passa a ser mais evidente nos seguintes ciclos de cultivo, confirmando esse comportamento ser consequência das especificidades de cada espécie incluída na rotação acumuladas no tempo. Em diferentes faixas de fertilidade temse rendimento (fertilidade percebida pelas plantas) entre 60 e 80% (Figura 7).

Verifica-se também que enquanto os teores de nutrientes no solo diminuíram com algumas rotações, com outras eles aumentaram, demonstrando claramente a habilidade das espécies cultivadas em ciclar mais ou menos nutrientes e a importância de considerar esse fato na avaliação da fertilidade. A percepção da existência e da magnitude do ruído na avaliação da fertilidade é a mesma sobrepondo aos resultados apresentados nesse artigo (Figura 5 e 7) as faixas de interpretação adotadas pela CQFS RS/SC na edição publicada em 2004 e em 2016.

Provavelmente, também seria com as sugeridas para outras regiões do Brasil, pois o problema é que as faixas de interpretação assim estabelecidas não estão contemplando a mudança no nível da fertilidade que é percebida pelas plantas.

O ruído no processo de avaliação da fertilidade, evidente principalmente nos solos cultivados por mais de 15 anos no SPD, induz a reflexão sobre mais uma questão: até que ponto um conjunto de valores ou faixas de interpretação de indicadores químicos pode representar, com boa ou alta confiabilidade, a fertilidade de um solo e garantir a expressão máxima do potencial produtivo de uma cultura num determinado ambiente?

Talvez com uma interpretação diferente dos resultados dos indicadores o ruído poderia ser diminuído, sem haver necessidade de mudanças nas outras etapas do processo, como amostragem e determinações químicas, e no conceito de fertilidade. Em 2004, a CQFS RS/SC adotou estratégias para diminuir a magnitude do ruído na avaliação feita com base na noção mineralista, que foram mantidas na edição publicada em 2016.

Na etapa da amostragem recomenda-se atenção a camada avaliada, aos equipamentos de coleta (preferencialmente com pá-de-corte) e ao número de subamostras para compor cada amostra (no mínimo 15).

Na etapa da interpretação dos resultados foi adotada estratégia do uso combinado de indicadores para recomendar calagem (pH, saturação por bases e por alumínio e P disponível) e para adubação fosfatada (argila e P disponível), potássica (CTC e K disponível) e nitrogenada (espécie antecessora, sua produção de massa seca e teor de MO no solo).

Além disso, as recomendações são aplicar corretivo para eliminar acidez do solo e adubo para manter os nutrientes na faixa Alto, em vez de mantê-los na faixa Médio (CQFS RS/SC, 2004).

Tentativas para diminuir o ruído na avaliação

As tentativas para melhorar a avaliação da fertilidade, sem alterar significativamente o processo de avaliação, são muito importantes, principalmente se isso for possível em curto prazo e com pouco recurso financeiro. Talvez isso possa ser feito na etapa da interpretação dos resultados ou pela seleção dos indicadores mais sensíveis, entre os tradicionais, para expressar a fertilidade percebida pelas plantas.

Poder-se-ia, também, relacionar os teores ou os valores normalizados desses indicadores com a produtividade, para identificar grupos de pontos que pudessem caracterizar diferentes níveis de fertilidade. A seguir são apresentados resultados obtidos em tentativas para diminuir a magnitude do ruído na avaliação derivada da noção mineralista. É conhecida a importância do C e do N para o desenvolvimento das plantas, por isso esses nutrientes foram determinados com métodos de combustão úmida (Walkley & Black) e de combustão seca (analisador Shimadzu), em amostras de solo coletadas nos experimentos em Eldorado do Sul (Figura 8; Nicolodi, 2007a).

Apesar da expectativa, os resultados obtidos não indicam que essas determinações possam aumentar a confiabilidade na avaliação, pois entre 1,0 e 2,0 % de C (Figura 6a) foi obtido rendimento de 2 a 11 t ha-1 de milho (desde muito baixo até muito alto) e com teores entre 1,5 e 3,0 % foi obtido rendimento superior a 9 t ha-1. Nem mesmo as determinações de N total (Figura 8b) e de mineral (Figura 8c) conferiram maior confiabilidade à avaliação, pois apresentam o mesmo padrão de resposta das análises de C. Logo, a inclusão de nenhuma dessas análises de macronutrientes essenciais melhorou a avaliação da fertilidade.

Outra possibilidade seria selecionar dentre os indicadores tradicionais da fertilidade os mais sensíveis em expressar às mudanças que as plantas cultivadas percebem. Um indicador é sensível para expressar as alterações promovidas pela mudança do sistema de cultivo e/ou da rotação de culturas na fertilidade do solo percebida pelas plantas, quando sua variação é proporcional à variação no rendimento das culturas.

Para os indicadores tradicionais de fertilidade, essa sensibilidade foi avaliada pelo rendimento de grãos de milho em experimentos conduzidos por mais de 20 anos em Eldorado do Sul (Nicolodi, 2007a). As alterações nesses atributos e no rendimento foram avaliadas comparativamente ao tratamento PC, cultivado com aveia e milho, considerado como referência (= 100%); os valores dos indicadores do solo e do rendimento dos outros tratamentos foram transformados em percentagem em relação à referência.

Assim, é possível observar o comportamento de vários indicadores em relação ao rendimento em uma mesma figura. Analisando os resultados obtidos nos tratamentos sem (Figuras 9a e 9b: 0 kg ha-1) e com adubação nitrogenada (Figura 9c e 9d: 180 kg ha-1), tem-se a impressão de que os mais sensíveis em expressar a fertilidade percebida pelas plantas foram P disponível e MO, principalmente nos tratamentos que receberam adubação nitrogenada.

Todavia, visualizando tratamentos com e sem adubação nitrogenada juntos, considerando como referência PC cultivado com aveia e milho sem adubação, na Figura 10 é possível concluir que nenhum desses indicadores tradicionais foi capaz de expressar a fertilidade percebida pelas plantas. Ou seja, não representa as condições dadas pelo solo para que a planta produza abundantemente.

Novamente, nem a MO, nem o P disponível e nem o N total foram sensíveis o suficiente para afirmarmos que o uso preferencial destes melhora a avaliação da fertilidade (Figuras 9 e 10). Além disso, na Figura 9 também verifica-se que os indicadores considerados mais importantes no PC, os da acidez, foram os que menos se relacionaram com o rendimento e, ainda, que o fato de o experimento ter sido conduzido sob irrigação não evitou a influência da umidade do solo na definição do rendimento (Figura 10).

Esses resultados, obtidos por diversos pesquisadores, sugerem que é o momento de considerar que indicadores das condições biológicas e físicas do solo também poderiam sem capazes de expressar a fertilidade, principalmente àqueles relacionados com decomposição da MO (Figura 11a) e atividade enzimática (Figura 11b). O comportamento dos resultados obtidos nas avaliações feitas nesses experimentos conduzidos em Eldorado do Sul pode ou não se repetir em outros experimentos.

Entretanto, a representação integrada do rendimento com os indicadores tradicionais avaliados num experimento conduzido em Marau, também mostra o grau de dificuldade para expressar a fertilidade percebida pelas plantas cultivadas no SPD (Figura 12); nenhum dos indicadores químicos determinados na camada de 0-10 nem na de 0-20 cm expressou a mudança obtida no rendimento de grãos da soja após 15 anos de experimento.

Outra possibilidade foi testada com uma técnica utilizada em outras áreas da Ciência, a normalização. A relação entre indicadores normalizados permite visualizar agrupamentos ou famílias de pontos de um indicador principal em relação à outros indicadores que determinam a mudança no seu comportamento. Então, com objetivo de identificar níveis de fertilidade que correspondessem a níveis de rendimento das culturas foram normalizados os resultados das avaliações feitas em quatro experimentos conduzidos por mais de 20 anos no RS (dois em Eldorado do Sul, um em Santo Ângelo e outro em Passo Fundo).

A técnica consiste em distribuir os valores dos indicadores entre 0 e 100 e relacioná-los num gráfico com o rendimento de grãos. Vários ensaios foram feitos, para cada local separado, com todos locais juntos, com valores reais observados normalizados, com os normalmente encontrados nos solos como 0 e 100, com rendimento normalizado e com rendimento relativo de grãos (Nicolodi, 2007a).

No exemplo hipotético apresentado na Figura 13a pode-se observar o comportamento ou distribuição dos pontos esperada em grupos ou famílias, ou seja, identificar famílias de pontos ou maior concentração de pontos em três locais. Um significando baixa fertilidade e baixo rendimento, outro média e outro alta fertilidade e alto rendimento.

O ensaio que melhor expressou diferentes níveis de fertilidade é apresentado na Figura 13b. Neste identifica-se uma família de pontos no alto, em que alta fertilidade corresponde a alto rendimento, mas também outras duas famílias que indicam que o rendimento das culturas obtido não foi dependente dos valores desses indicadores químicos. O uso desta técnica não diminuiu a magnitude do ruído e nem melhorou a avaliação da fertilidade do solo.

A mudança do sistema de cultivo, do PC para o SPD, e os benefícios do tempo de cultivo nesse sistema, proporcionados ao solo e ao desenvolvimento das plantas, diminuem a importância do uso isolado de atributos químicos avaliados em amostras de solo (Nicolodi, 2006). A possibilidade de aumento da confiabilidade na avaliação da fertilidade feita a partir desses indicadores tradicionais depende da execução de uma nova calibração para os diferentes sistemas de cultivo e para cada (ou grupo de) cultura no RS, a fim de definir os teores críticos e as faixas de interpretação considerando o histórico de cultivo do solo (efeitos do grau de mobilização do solo, da diversidade de espécies cultivadas e do tempo).

Porém, esse ajuste no processo de avaliação demanda altos investimentos de recurso financeiro, de mão-de-obra qualificada, de tempo e de trabalho de campo amplo e longo. Organizar, conduzir e concluir com sucesso a nova calibração é muito difícil, à semelhança do desenvolvimento de nova metodologia de manuseio de amostras indeformadas de solo (coleta, armazenamento e determinações laboratoriais).

Esta é uma possibilidade muito interessante, que permitiria determinar numa mesma amostra condições físicas, químicas e biológicas de solo, inclusive analisar outros indicadores como, por exemplo, fluxo ascendente de água no solo.

Contudo, os resultados apresentados nesse artigo e inúmeros outros publicados na literatura expõe a alta magnitude do ruído na avaliação da fertilidade, principalmente com adoção de sistemas de cultivo conservacionistas, e indicam que o enfoque e a avaliação química não são suficientes para entender e expressar a fertilidade percebida pelas plantas quando o solo não é desagregado, isto é, quando são preservadas as relações construídas com o tempo de cultivo.

Melhorar a aplicação do conhecimento e recomendar práticas adequadas para cada situação e potencial produtivo significa diminuir o ruído nas diversas etapas da avaliação.

Isso conduz, necessariamente, também a reflexão profunda sobre a noção da fertilidade do solo. Com intuito de compartilhar informações e promover uma ampla reflexão foram publicados dois artigos na Revista Plantio Direto – “Repensando ao conceito da fertilidade do solo no SPD” (Nicolodi, 2007c) e “Poderia ser a fertilidade entendida como uma propriedade emergente do sistema solo?” (Nicolodi et al., 2007) – e um breve histórico no Boletim Informativo da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo – Reflexão sobre a fertilidade além das condições químicas do solo (Nicolodi & Gianello, 2016) –.

Desafios à caracterização da fertilidade percebida pelas plantas

Essa reflexão sobre a noção da fertilidade, que evoluiu de uma noção ampla para uma restrita às condições químicas do solo, e a identificação das principais fontes de ruído no modo de avaliação adotado atualmente pode conduzir à superação dos desafios à caracterização daquela fertilidade percebida pelas plantas e contribuir para a sua melhoria.

Tem-se a impressão de que quanto mais a fertilidade é detalhada e quanto maior a tecnologia aplicada para avaliá-la, mais se afasta da essência e perde-se a noção do todo; por isso, maior é a discrepância entre a noção da fertilidade dos humanus, o nível de fertilidade do solo interpretado através da avaliação e a fertilidade do solo percebida pelas plantas (Nicolodi, 2007a).

Um dos grandes desafios para o cientista do solo é quantificar a magnitude da fertilidade percebida pelas plantas em solos cultivados em sistemas conservacionistas, ou seja: aproximar ao máximo a avaliação da fertilidade feita numa amostra de solo totalmente desagregada daquela percebida pela planta que em função dessa produz mais ou menos.

Dito de outro modo: diminuir a magnitude do ruído na avaliação da fertilidade. Nesse contexto, após ter sido evidenciada a alta magnitude do ruído e verificado que nenhuma das tentativas foi capaz de diminuí-lo, surge a questão: aumentando os valores dos indicadores para interpretação da fertilidade no solo cultivado no SPD como preconizado no PC, poderia a produtividade das plantas aumentar?

Se a resposta for ‘sim’ então o desafio é ajustar os valores dos mesmos indicadores ao novo sistema de preparo e cultivo do solo, fazer uma ampla calibração em sistemas conservacionistas. Todavia, provavelmente, readequar os valores não irá melhorar significativamente a avaliação, pois nesses sistemas pode ser obtida produtividade alta com fertilidade avaliada como baixa e como alta.

Se a resposta for ‘não’, então outro grande desafio é descobrir os outros fatores que estão determinando a produtividade e não sendo suficiente somente readequar os valores limites das faixas de interpretação para os mesmos indicadores. ‘Não’ é a resposta mais frequente. Neste caso, pelo menos cinco desafios deveriam ser superados (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007b).

O primeiro desafio é admitir a insuficiência do conceito mineralista para expressar a fertilidade percebida pelas plantas em solos cultivados em sistemas diferentes do convencional. Nos resultados dos experimentos foi possível observar o grau de dificuldade que existe na avaliação da fertilidade devido às inúmeras combinações possíveis de sistemas de cultivo e de rotações (Nicolodi, 2007a; Nicolodi et al., 2008; Fiorin, 2008).

Além disso, a importância dos indicadores clássicos da fertilidade é menor em solos cultivados no SPD do que no PC. Num sistema simples, como no PC, poucos fatores são responsáveis pela produtividade, e a alteração de qualquer um deles gera mudanças significativas nos resultados. Em sistemas mais complexos, como no SPD, em que há um grande número de fatores influenciando a produtividade, a alteração de um ou alguns deles têm pouca ou nenhuma influência (D’Agostini, 2006).

A caminhada para superar este desafio poderia partir do (re)pensar como os humanus entendem o solo e a sua fertilidade, usando um modelo sistêmico e priorizando o estudo das interações em detrimento dos fatores ou efeitos isolados na produtividade das plantas. O segundo desafio é entender a fertilidade percebida pelas plantas como propriedade gerada pelo funcionamento do solo como um todo, ou seja, do sistema solo.

Para superar este desafio precisamos aprimorar o nosso entendimento do solo, dos principais processos que determinam o seu funcionamento, ou seja, o cumprimento das suas funções e de como é gerada a fertilidade e determinada a sua magnitude. As principais interações que determinam o funcionamento do solo ocorrem entre este e os sistema clima e vida — composto pelos subsistemas planta, animal e homem —, se mantêm através de “trocas” ou cumprimento de “funções” (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007a; Nicolodi, 2007c).

Os efeitos do tempo são essenciais na evolução dos sistemas abertos, que possuem capacidade de auto-organização, pois alguns acontecimentos ou eventos podem mudar a trajetória evolutiva do sistema e gerar novas coerências ou possibilidades de história (Prigogine & Stengers, 1992).

O solo é um sistema aberto que funciona longe do equilíbrio e que se auto-organiza no tempo; dependendo das condições iniciais, das interações com outros sistemas e dos fluxos e retenção de matéria e de energia, é gerada turbulência e o sistema se auto-organiza (Addiscott, 1995; Vezzani, 2001). Nestes momentos de turbulência (pontos de bifurcação) são geradas propriedades emergentes e definidos os novos estados de ordem atingidos pelo sistema (Prigogine, 1996).

Quando ocorre a dominância dos processos de ordenação sobre os de dissipação, o solo se organiza em níveis de ordem mais alto, com predomínio dos efeitos das interações como no solo cultivado no SPD, e quando ocorre dominância dos processos de dissipação sobre os de ordenação, o solo se auto-organiza em níveis de ordem mais baixo, com predomínio dos efeitos simples, como ocorre no solo no PC (Vezzani, 2001).

Em consequência do funcionamento e da trajetória evolutiva do solo, constantemente em formação pela ação da vida sobre o regolito ou sobre a rocha matriz, emerge uma fertilidade, de magnitude maior ou menor (Nicolodi, 2007a; Nicolodi, 2007c). Interpretando o cenário de outro ponto de vista, o subsistema planta precisa essencialmente que o sistema solo (1ª função) dê suporte físico para o seu desenvolvimento e para as trocas e que (2ª função) armazene e disponibilize nutrientes, água e oxigênio.

Logo, tudo o que é essencialmente ligado ao cumprimento da primeira função do sistema solo pode ser chamada de subsistema estrutural e o que é ligado à segunda, chamada de subsistema renovável. Conforme é a interação entre as condições físicas, químicas e biológicas nos processos que determinam o cumprimento dessas funções, ou seja, a interação entre os subsistemas estrutural e renovável, emerge uma fertilidade de magnitude diferente — são as condições dadas pelo sistema solo para sustentar a vida das plantas; é o desenvolvimento e a produtividade.

A propriedade emergente fertilidade é que torna o sistema solo um meio para produzir alimentos (Nicolodi et al., 2004; Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007a; Nicolodi, 2007c). O terceiro desafio é identificar indicadores químicos, físicos e biológicos dos principais processos que determinam o funcionamento do sistema solo, que expressem a magnitude da fertilidade percebida pelas plantas em sistemas conservacionistas com diferentes rotações de culturas.

O funcionamento do solo cultivado no PC é muito semelhante no tempo (constantemente revolvido e destruídas as relações construídas) e de modo semelhante a magnitude da fertilidade, tanto que os seus indicadores têm valores fixos. Entretanto, o funcionamento do solo, a intensidade das interações e dos processos que ocorrem no solo mudam com o tempo de cultivo e com a rotação de culturas adotada.

Por exemplo, as interações entre estrutura, água, nutrientes, MO e desenvolvimento radicular das plantas são diferentes conforme o tempo de sistema e as espécies cultivadas. Dependendo da intensidade das interações, emerge uma fertilidade de magnitude diferente, beneficiando menos ou mais o desenvolvimento das plantas (Nicolodi et al., 2004; Nicolodi, 2007a).

Não é possível medir essa diferença com a avaliação atual, pois estão sendo avaliados somente alguns indicadores do subsistema renovável. A primeira diferença que se sobressai entre esta concepção e a mineralista é a contribuição direta do subsistema estrutural e a segunda é do componente água do subsistema renovável. Estas duas diferenças são mais importantes nos sistemas de cultivo com menor revolvimento e com maior adição de palha; num solo cultivado por muitos anos no SPD, esses interferem muito mais.

A magnitude da fertilidade do sistema solo é determinante no desenvolvimento e na produtividade das plantas, mas não somente ela (Nicolodi, 2006; Nicolodi, 2007a). Da interação dos subsistemas estrutural e renovável do sistema solo emerge a fertilidade, que tem sua magnitude determinada pelo desempenho desses subsistemas.

Esta e o topoclima compõem um ambiente específico que interage com o sistema vida. Conforme essa interação e as particularidades do subsistema planta ou das espécies cultivadas através da agricultura são gerados produto primário, a produtividade, e produto secundário, o resíduo. É fundamental ter consciência dessas interações para decidir as práticas que serão adotadas para interferir na fertilidade e na produtividade, ou seja, estimular emergência de propriedade com maior magnitude.

O quarto desafio é adequar ou desenvolver metodologia de amostragem e de determinação, quantitativa e/ou qualitativa, práticas e de custo acessível, e estabelecer os critérios para interpretação dos indicadores da fertilidade do sistema solo para os principais grupos de espécies cultivadas em sistemas conservacionistas. Isso, de preferência, com base no cumprimento das funções dos subsistemas estrutural e renovável do sistema solo, lembrando que propriedade emergente não é previsível como certeza de valor, somente como tendência de comportamento.

A viabilização de procedimentos de coleta, armazenamento e determinações laboratoriais de condições físicas, químicas e biológicas em amostras indeformadas de solo representaria um progresso enorme. O quinto desafio é adequar as práticas recomendadas para melhorar e/ou manter a fertilidade, o bom funcionamento do sistema solo e alta produtividade das plantas.

Agregar outras práticas conhecidas que melhorem o funcionamento do solo como um todo, ou seja, do sistema solo e que estimulem a emergência de fertilidade de magnitude maior à aplicação de corretivos e adubos como:

a) estimular a diversidade de vida: rotação de culturas e manutenção da palha na superfície do solo sem queimá-la;

b) estimular o bom funcionamento dos subsistemas estrutural e renovável;

c) repor os nutrientes exportados pelas culturas;

d) manter sempre o solo cultivado com menor revolvimento possível (para a produção de grãos processo colhersemear). Apesar do enorme avanço em termos de avaliação da fertilidade e da disponibilidade de adubos desde os tempos de Columella (42 d.C.) e da identificação desses desafios, vale lembrar que alguns “ditos” da Antiguidade continuam atuais.

(I) O empobrecimento ou “cansaço” da terra é causado pelo cultivo continuado de uma mesma cultura (monocultura).

(II) Existem plantas que são exploradoras e outras que são melhoradoras da fertilidade da terra. É importante fazer a rotação de culturas.

(III) A terra não empobrece se é adubada.

(IV) A terra deve ser adubada principalmente quando forem cultivadas espécies exploradoras da sua fertilidade. Além disso, há quase dois mil anos já se enfatizava que

(V) para se dedicar à agricultura são igualmente necessárias três coisas: o conhecimento da matéria, a disponibilidade de capital para investir e a vontade de executar (Columella, 42 d.C.).

Considerações

1. A noção mineralista da fertilidade do solo foi fundamental para o progresso da agricultura, principalmente no século passado. A mudança do sistema de preparo do solo aumentou a magnitude do ruído na avaliação e tornou evidente as limitações dessa noção para expressar a fertilidade.

2. A reflexão sobre a magnitude do ruído nos diversos resultados de pesquisas publicados deveria despertar nos humanus a consciência de que o momento atual possui elementos teóricos e práticos suficientes para promover a mudança da noção da fertilidade. É importante repensar a noção, os conceitos, a avaliação e as práticas recomendadas para mantê-la e/ou aumentá-la a fim de contribuir para o aumento da produtividade das plantas e da lucratividade na agricultura, melhorando e preservando o ambiente.

Uma abordagem sistêmica do solo pode ser muito útil para avaliar a fertilidade percebida pelas plantas cultivadas em sistemas diferentes do PC. É necessário adequar ou construir metodologia para avaliar a fertilidade do sistema solo cultivado em sistemas conservacionistas com diferentes rotações, entendendo a fertilidade como propriedade gerada pelo funcionamento do solo como um todo, identificar os indicadores mais sensíveis em expressar a mudança da magnitude da fertilidade e estabelecer os critérios para interpretação deles.

3. Esses e outros desafios serão superados com maior rapidez usando também os recursos tecnológicos disponíveis. Certamente não será fácil, porém é essencial e possível. Embora fora de “moda”, a fertilidade continua sendo um problema atual. Tem-se a expectativa de, com esse relato, registro ideias e divulgação de resultados, contribuir para melhorar o entendimento dos humanus sobre a fertilidade do sistema solo percebida pelas plantas.

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