A palha como patrimônio: A trajetória de Nercio e Vanderlei Neu, nos 20 anos de plantio direto na Granja Vania


Autores: Equipe Editorial Revista Plantio Direto
Publicado em: 31/01/2016

Numa visita a XV de Novembro, RS, conhecemos uma propriedade que pode ser considerada modelo de manejo no Sistema Plantio Direto. Há 20 anos plantando na palha e sendo conduzida por pai e filho, a Granja Vania tem na rotação de culturas a base para altas produtividades

Natural de Arroio do Tigre, município da Região Central do Rio Grande do Sul, o agricultor Nercio Neu mudou-se em 1963 com seus pais para Ibirubá. Dez anos depois, casou-se com Iraci Ruppenthal e passou a trabalhar na propriedade do sogro, localizada em XV de Novembro. Em Arroio do Tigre a família Neu cultivava fumo, feijão e se dedicava a criação de suínos, depois, já no Planalto, o foco foram as culturas de soja e trigo.

Nercio Neu é um bom exemplo da persistência dos agricultores do norte gaúcho no início da década de 1990, quando o plantio direto foi definitivamente implantado no Estado. “Em 1988 a gente separou a granja, meu cunhado também casou e passou a se dedicar a produção de leite e eu queria ficar na agricultura. Então, em 1994 comecei com o plantio direto”, conta.

Mas o início não foi fácil e a persistência de Nercio Neu foi importante para a implantação do sistema em 100% da área desde o primeiro ano. “Fui fazendo o plantio direto da minha maneira, do jeito que eu soube fazer, fui inventando, fazendo adaptação, mas com muita dificuldade. A plantadeira era diferente, eu não sabia fazer as regulagens e o Vanderlei na época estava estudando fora, no Colégio Agrotécnico, em Sertão.

Como a região era mais dedicada ao leite, não tinha muito a quem recorrer para a troca de experiências. Naquele tempo leite e plantio direto não combinavam, hoje é diferente”.

Nos primeiro anos, além da dificuldade de regulagem da plantadeira, o controle de plantas daninhas foi considerado por Nercio Neu um grande desafio. Ele lembra de uma ocasião em que junto com a esposa limparam a lavoura na base da capina manual. “O herbicida não funcionou, não sei se fiz dosagem errada, mas buva ultrapassava a soja com o dobro da altura. Pegamos a enxada, eu e a mulher, começamos a capinar as plantas de buva no meio da soja, não foi fácil”.

Nercio recorda ainda que, escapando do sol que castigava, o casal fazia uma pausa para o almoço em baixo das árvores que também eram usadas como abrigo nas eventuais pancadas de chuva de verão durante a jornada de trabalho, que começava ao amanhecer e terminava no início da noite.

De pai para filho

Ao longo de 20 anos o filho de Nercio Neu, Vanderlei, foi um grande entusiasta do plantio direto e teve papel fundamental para a continuidade do uso de técnica na propriedade por duas décadas, sem interrupção.

Motivado por professores, em especial José Ruedell e Mário Bianchi, Vanderlei desenvolveu durante a formação em agronomia grande paixão pelo Sistema. Como não poderia deixar de ser, os nomes de Nonô Pereira e Herbert Bartz, assim como o IV Encontro Nacional de Plantio Direto, realizado em Cruz Alta, em 1994, foram muitas vezes citados durante os relatos.

Outra dificuldade inicial referida por Vanderlei foi o controle do tamanduá-da-soja, praga que nos primeiros anos do plantio direto tomou conta das lavouras e assustou os agricultores.

“Hoje com fipronil no tratamento de sementes se controla o tamanduá-da-soja, mas naquela época não foi fácil. A pesquisa não tinha muita informação e os agricultores faziam muita loucura testando produtos, tentando encontrar algo que funcionasse”.

Vanderlei lembra que José Ruedell falava em sala de aula da necessidade de se construir um monumento ao tamanduá-da-soja, pois a praga foi um grande professor de plantio direto para os técnicos e agricultores. Isso porque no início da década de 1990, quem não plantasse milho na rotação estava com a lavoura de soja comprometida pelo ataque do tamanduá.

Ele recorda também do trabalho dos Clubes Amigos da Terra e considera esses grupos precisam do engajamento dos jovens agricultores para garantir a qualidade do plantio direto e sua manutenção como um sistema.

“Devemos dar sequência aos Clubes. No pouco tempo que tenho disponível tento fazer alguma coisa. O plantio direto não pode ser uma monocultura de soja com pousio no inverno. Do contrário vamos continuar vendo erosão em áreas que dizem ser de plantio direto”.

A erosão é uma preocupação de Vanderlei, por isso ele tem cuidado para manejar a água da chuva, evitando que ela saia da lavoura. “Aqui na propriedade com uma chuva de 200 mm em menos de uma hora correu água, mas não levou solo junto, a água correu por cima da palha. Esse é um dos benefícios de um solo estruturado, pois existem áreas que com 10 mm de chuva a água já começa levar o solo da lavoura.

E quando tem uma estiagem de 15 dias, as plantas já murcham. Aqui, continua tudo verde, porque tem água armazenada em um solo estruturado com palha e raiz”. Com um talhão inscrito no concurso de campeões de produtividade da CESB, Vanderlei percebe que o manejo adotado aumenta suas chances de atingir grandes produtividades na cultura da soja.

Para ele um dos motivos, se não o principal, é a rotação de culturas. “Aqui o milho sempre fez parte do sistema, podia até ter previsão de seca, mas a gente plantava.

O pai às vezes relutava e dizia: “tu vai me quebrar”, mas seguíamos com o plano de rotação e os resultados sempre foram positivos. Sou apaixonado pelo milho, tu colhe e aí fica essa camadona de palha, esse é o nosso verdadeiro patrimônio”.

Fórmula do sucesso cada um tem a sua

Em 1997, com três anos de plantio direto na propriedade, Vanderlei e o pai Nercio, enfrentaram um longo período de chuva no momento do plantio.

“Na época se usava disco de corte, sulcador mais disco duplo, começamos o plantio e não estava dando muito certo, daí pensei em tirar sulcador, pois já tinha previsão de chuva para o dia seguinte. Tiramos o sulcador e começamos a plantar, houve revolvimento. Fiquei chateado porque sempre cuidei para não revolver solo na linha de plantio.

Olhava para trás e via aquele chão vermelho e pensava que aquilo não estava certo”. Mas o problema é que a chuva estava chegando e o plantio precisava ser finalizado. Então, Nercio Neu decidiu tirar também o disco de corte da semeadora. Vanderlei conta que essa soja produziu 70 sacos por hectare, sem disco de corte e sem sulcador.

“Na prática a gente foi aprendendo o que funcionava aqui, na propriedade. Hoje sabemos que faz a estrutura do solo é a raiz, aquele pedaço de ferro vai romper uma camadinha, mas logo abaixo como é que fica? Por isso não abro mão da rotação de culturas”, reforça. Motivo de orgulho, a rotação de culturas é algo que Vanderlei não pensa em abandonar.

“O milho chega a 200 sacos e deixa muita palha, colho milho, planto nabo forrageiro e o trigo sobre o nabo.

A palha é o início de tudo, não podemos deixar o solo descoberto nunca, porque se sai palha no picador é porque entra grão no graneleiro”.

Para Vanderlei o fator que mais influencia para a ausência de um sistema de rotação de culturas nas propriedades é o preço da soja e a facilidade que sempre foi plantar esta cultura. “Plantar soja sempre foi fácil.

Hoje começou a dificultar um pouco, tem a resistência das plantas daninhas, a falta de palha, a erosão. Colhendo 200 sacos de milho a R$ 40,00 você precisa colher equivalente a 100 sacos de soja a R$ 80,00 para chegar no mesmo valor. Sem contar o benefício da rotação, porque onde não se planta milho é difícil chegar a 70-80 sacos de soja/ ha”.

Mas ele destaca que é importante fazer uma análise no médio prazo, porque se o agricultor avaliar uma única safra, vai parecer que não vale a pena. Para Vanderlei, o solo argiloso da propriedade, entre 48 a 52%, deixou o inicio do plantio direto um pouco mais complicado, pois as áreas, antes com o plantio convencional, compactavam com facilidade porque tinham pouca matéria orgânica.

“É mais difícil estabelecer raízes no solo argiloso, e essa foi uma das dificuldades iniciais, mas hoje sinto orgulho quando lembro do passado das dificuldades que superamos, sabendo que hoje conseguimos colher 200 sacos de milho por hectare em sequeiro. Sem dúvida esse resultado é fruto dos 20 anos de dedicação e trabalho”.

Conservação além da lavoura

A consciência de preservação do meio ambiente foi destacada por Nercio Neu, que tem a inspiração reforçada pela filha Vania, Doutora em Ecologia, professora e pesquisadora na Universidade Federal do Pará, em Belém (PA). “Essa é uma coisa que nós cuidamos muito aqui, onde não tem lavoura tem grama, cuidamos dos barrancos para não dar erosão.

Acho que conservação não deve ser só na lavoura, deve ser em toda a propriedade, principalmente a água e a preservação das áreas de APPs e Reserva Legal. É importante pensar a questão ambiental e a agricultura de forma harmônica, pois elas têm condições de evoluir juntas e com sustentabilidade”.

A base é a rotação Vanderlei Neu explica que na propriedade a base de tudo é a rotação de culturas, muita palha, adubação de sistema feita a lanço. “Algumas linhas de pesquisa dizem que o fósforo não pode ser aplicado a lanço, mas se não desse resultado nós não teríamos um rendimento de 80 sacos de soja e 200 de milho por hectare, mas essa é uma realidade do solo dessa propriedade, talvez não se aplique de forma generalizada”.

Para ele a adubação a lanço é possível, mas a questão da palha e da estrutura do solo é muito importante. “Colocar o adubo na superfície sem ter palha e com um solo desestruturado não adianta, a chuva vai levar tudo embora. Aqui o calcário também é em superfície, antes era com o caminhão, mas em função da desuniformidade na aplicação, estamos usando calhadeira”.

Em relação à incorporação do calcário no solo Vanderlei explica que o nabo ajuda nesse processo. “O nabo tem raiz profunda e quando começa a apodrecer, essa estrutura de galeria deixada pela raiz favorece a infiltração da água da chuva fazendo com que o calcário desça em diferentes profundidades. Mas precisa ter palha e raiz, e isso não tem dinheiro que pague”.

Na Granja Vania, a função principal do trigo é compor o sistema de rotação, pois mesmo que o clima não ajude, a cultura garante boa palhada para a lavoura. Nercio e Vanderlei Neu também já fizeram experiências com feijão, canola, milheto, sorgo, cevada.

“Com a rotação melhoramos muito a estrutura do solo, saindo uma cultura e entrando outra o solo nunca fica descoberto.

No início do plantio direto chegamos a fazer milho sobre milho como alternativa para melhorar a palhada”, explica Vanderlei. Ele se diz um apaixonado pela cultura do milho e conta que a variedade que plantada há oito anos é o híbrido 30F53 da Pioneer. “Sempre colhemos bem, tanto na seca quanto na chuva, ele só não permite fazer safrinha”.

No esquema de rotação que a propriedade utiliza (Ver gráfico) estão contemplados o milho, o nabo forrageiro e uma gramínea. “Estou pensando em semear o nabo quando a soja está lourando, sei de agricultores que já fazendo esse trabalho. É uma alternativa no período entre soja e a cultura de inverno, quando uma parte da lavoura fica descoberta.

Meu objetivo é chegar a 50% soja e 50% milho no verão”. Vanderlei planta milho com o espaçamento de 90 cm porque a plataforma de colheita da propriedade é de 90 cm, mas isso não o incomoda, até porque para ele o espaçamento ideal para o milho seria o de 60 cm. “Prefiro investir em fertilidade/adubação e continuar com os 90 cm do que investir em plataforma de 45”.

Nas áreas que compõem a agropecuária Vania e Tamanduá, a adubação é feita no sistema. O adubo é colocado na cultura do trigo, entre julho e setembro. “Para o milho colocamos uma parte no sistema e outra no momento do plantio, por causa do nitrogênio, como não uso nabo na cultura antecessora é fundamental colocar nitrogênio.

Para a lavoura de soja faz muitos anos que só vai a semente na plantadeira. Nas áreas trigo e soja, conforme a análise, geralmente é 200 kg de DAP e 200 kg de cloreto de potássio, nutriente que serve para as duas culturas. No milho a gente investe mais em fertilizante porque ele exige mais”, explica Vanderlei.

Quanto às plantas daninhas o sistema adotado por Vanderlei Neu minimiza o problema, mesmo assim ainda há ocorrência devido ao manejo adotado nas áreas vizinhas.

“Buva praticamente não tem, as poucas plantas que aparecem nas áreas tem origem na sementes vieram com o vento das propriedades vizinhas, onde não há um bom controle e isso se repete todo o ano. Então, se precisar faço controle no inverno e um complemento no verão”.

Com solo estruturado a água fica na lavoura

Apesar das áreas da família Neu apresentarem certa declividade, elas não possuem mais terraços que foram desmanchados ao iniciar o plantio direto, em 1994. Segundo Vanderlei, com o sistema de manejo adotado não há necessidade, há muita palha, o solo está estruturado e protegido.

Quando a chuva é grande, a água que não infiltra escorre sobre a palha, mas sem levar solo junto.

Vanderlei maneja as áreas de forma a manter a maior quantidade de água na lavoura, mas ele defende que cada agricultor avalie a necessidade ou não de terraço, considerando a condição da sua propriedade.

Quanto à estrutura do solo depois de 20 anos de plantio direto, Vanderlei conta que durante um dia de campo houve grande tráfego de máquina em um dos talhões causando preocupação pela evidente compactação da área.

“Fiquei preocupado e logo depois do evento plantei nabo-forrageiro que rendeu uma boa massa e soltou o solo. Depois o trigo soltou ainda mais e assim a soja não sentiu. Se o solo estiver estruturado, em menos de um ano se consegue reverter esse tipo de compactação. Mas para isso o segredo é palha e raiz o ano todo. Solo não se solta com disco de corte e sulcador, solo se solta é com raiz”.