Gestão da produtividade da água em agricultura: o desafio de elevar o rendimento dos cultivos em ambientes com restrição hídrica


Autores: Gilberto Rocca da Cunha, Anderson Santi, Aldemir Pasinato, Genei Antonio Dalmago , João Leonardo Fernandes Pires , Jorge Alberto de Gouvêa
Publicado em: 31/12/2014

Introdução

Indiscutivelmente, para fazer frente às necessidades de alimentos (tanto para o abastecimento humano quanto de animais domésticos que são criados como pets ou para a exploração de funções zootécnicas especializadas, tipo produção de carne, leite, ovos, lã, etc.) e de matériasprimas para uso industrial (fibras, celulose, biocombustíveis, etc.), que se avizinham com a mudança do padrão de consumo e o crescimento da população mundial, estimada em 9 bilhões de pessoas por volta do ano 2050, em um ambiente de acirrada competição por terras e água, destaca-se, entre os principais desafios que agricultura contemporânea ora enfrenta e doravante terá de lidar cada vez mais, a gestão da produtividade da água.

Ainda que os números que apontam a agricultura como o segmento da economia que mais utiliza água no mundo (ao redor de 70% do consumo global) mereçam ser relativizados, uma vez que a maior parte dessa quantidade de água entra no ciclo hidrológico e retorna à natureza, em meio a crises de abastecimento urbano (caso da experiência vivida pelo estado de São Paulo no final de 2014 e começo de 2015), esses são dados que não podem ser negligenciados e reforçam a preocupação, cada vez mais necessária, com a gestão hídrica em agricultura.

O entendimento de conceitos, que são necessários para poder quantificar e melhor manejar a oferta natural de águas das chuvas ou fornecidas por irrigação em sistemas agrícolas produtivos, é o objetivo principal desses artigo/ensaio, que foi embasado na experiência profissional dos autores e em informações de literatura especializada.

Eficiência de Uso da Água (EUA) X Produtividade da Água em Agricultura

A expressão Eficiência de Uso (EU), apesar de ser bastante conhecida na área agronômica, como representação da razão de um atributo de produção (biomassa total, grãos, óleo, proteína, calorias, etc.) pelo uso de certa quantidade de insumo ou de recurso disponível no ambiente, não raro, é causa de confundimento com a interpretação que é dada à palavra “eficiência” na área de gestão/administração e nas engenharias.

Em irrigação, comumente, o termo eficiência é usado para expressar a razão entre a quantidade de água que é captada e a que é distribuída nos diferentes pontos do sistema empregado. Ou, em termos práticos, como a razão entre a água captada e a liberada no perfil do solo que é explorado pelas raízes das plantas, uma vez que não podem ser desconsideradas as perdas por escoamento superficial, percolação profunda e evaporação.

Nesse caso, eficiência sendo representada por números entre 0 e 1 ou, percentualmente, entre 0 e 100%. Agronomicamente, no caso de cultivos de lavoura, cujo atributo de interesse econômico principal é a produção de grãos, EUA significa, por exemplo, a quantidade de grãos produzida por unidade de área cultivada e por unidade de água usada.

Para melhor entendimento, por exemplo: kg de grãos.ha-1.mm-1. Isso posto, para evitar confusão entre as lógicas das engenharias e de gestão com o entendimento de maior relevância em agronomia, há quem considere, na área agrícola, como sendo mais adequada a expressão “Produtividade da Água” (PA), para representar a razão entre rendimento por unidade de evapotranspiração ou por unidade de água usada (chuva + irrigação + variação do armazenamento no solo), em vez de “Eficiência de Uso da Água” (EUA), que, não raro, tem sido mal empregada, quando não há uma definição estabelecida a priori; especialmente na transposição de resultados de desempenho produtivo obtidos sob condições controladas para os cultivos no campo.

Produtividade da Água x Rendimento dos Cultivos

A escassez de terras e de água, em paralelo à preocupação econômica do retorno dos investimentos feitos em agricultura, tem justificado a busca da intensificação dos sistemas agrícolas produtivos.

A disponibilidade de água (via chuvas e/ou armazenamento de água no solo), especialmente no caso brasileiro, em que, majoritariamente (com exceção do arroz), os principais cultivos de lavoura (soja, milho, etc.) são produzidos sem o uso de irrigação (regime de sequeiro), exerce influência marcante no despenho das safras.

E, nesse particular, o entendimento do conceito de “Rendimento Potencial Limitado pela Disponibilidade de Água”, que está atrelado à exploração da produtividade da água, é fundamental para o manejo, em agricultura, das especificidades ambientais regionais. A Figura 1 mostra a relação entre o rendimento de grãos de um cultivo hipotético qualquer, que, no Brasil, se presta para o caso das lavouras de soja ou de milho, por exemplo.

Ilustra bem o conceito de Rendimento Potencial Limitado pela Disponibilidade de Água (RPLDA). O RPLDA, na Figura 1 (a), é representado pela linha tracejada, que delimita uma espécie de função de contorno para os valores de rendimento (pontos vermelhos), quando se admite que esse é condicionado unicamente pela disponibilidade (quantidade) de água, uma vez estando supridas todas as demais necessidades nutricionais das plantas e sob condição de manejo sanitário perfeito (controle pleno de plantas daninhas, pragas e doenças).

A dispersão de pontos à direita da linha tracejada, admitindose que essa define o rendimento potencialmente atingível pela cultura com uma dada quantidade de água, é indicativa de que outras causas adicionais à oferta de água estão limitando o rendimento daquele cultivo.

Em cada caso, quanto mais afastado está o ponto da linha tracejada, mais ineficiente foi o uso dos recursos do ambiente e dos insumos utilizados. Na Figura 1 (b) a discussão é mais bem exemplificada.

Considere duas situações hipotéticas, passiveis de ocorrência nos anos safras 1 e 2. Em cada um desses anos safra (1 e 2), a disponibilidade de água define um RPLDA, representados pelos pontos 1A e 2A assinalados sobre a linha tracejada, sendo RPLDA2 maior que o RPDLA1, em função de uma maior disponibilidade de água. Todavia, tanto no ano safra 1 (ponto 1B) quanto no ano safra 2 (ponto 2B), os rendimentos obtidos não são diferentes.

Nesse caso, fica evidente que, nas duas safras, os rendimentos obtidos (1B e 2B) foram aquém dos potencias definidos pela oferta hídrica (1A e 2A). No entanto, no ano safra 2, o rendimento obtido (2B) foi muito abaixo do potencial de rendimento definido pela oferta hídrica (2A).

Ou seja, independentemente da maior disponibilidade de água, o manejo no ano safra 2 foi inadequado para explorar a maior oferta hídrica, uma vez que a diferença de rendimento entre 2A e 2B é muito maior que entre 1A e 1B.

Independentemente da situação, o papel do manejo dos cultivos é estreitar a diferença entre os níveis de rendimentos (1B/2B X 1A/2A). Ou seja, a opção preferencial de manejo dos cultivos deve ser aquela que, em função da oferta hídrica, aproxime os níveis de rendimento B dos níveis de rendimento A.

Produtividade da Água X Rendimento do milho

O rendimento do milho no Rio Grande do Sul é altamente dependente da disponibilidade de água, em especial no período crítico do ciclo de desenvolvimento desse cultivo, que abrange do apendoamento até o início de enchimento dos grãos, com destaque para o espaço de 10 dias concentrados entre dois dias antes da emissão do pendão até sete dias após.

Em base a uma vasta experimentação conduzida a campo, entre as safras 1993/94 e 2002/03, em Eldorado do Sul/RS, Bergamaschi et al. (2006), conforme dados apresentados na Figura 2, demonstraram inequivocamente a importância da quantidade de água e do período crítico do ciclo da cultura na expressão do rendimento de grãos em milho.

São três os manejos de água (precipitação pluvial + irrigação = P + I) representados na Figura 2: (1) emergência até maturação fisiológica com umidade do solo mantida próxima da capacidade de campo pela chuva e suplementação de dose completa de irrigação (círculos verdes); (2) uso de irrigação complementar em doses parciais (quadrados amarelos); e (3) sem irrigação (triângulos vermelhos).

Os rendimentos do milho localizados quadrante superior direito da Figura 2 (acima de 9.000 kg.ha-1, que podem ser considerados elevados para a região da Depressão Central do RS) são majoritariamente associados com os manejos de água (1) e (2), cujas lâminas de água (P+I) são maiores que 550 mm (valor que pode se usado como referência média de evapotranspiração máxima para o ciclo da cultura do milho).

Outro aspecto importante, que pode ser visualizado nessa figura, é o efeito da distribuição de água ao longo do ciclo, em função do período crítico da cultura, no rendimento do milho, em que não é suficiente apenas a quantidade de água, como indicam os casos dos baixos rendimentos do manejo de água (3), localizados no quadrante inferior direito (triângulos vermelhos).

A imagem posta na abertura desse artigo retrata bem os contrastes do desempenho de rendimento do milho, na safra 2002/03, sob manejo sem deficiência hídrica (9.596 kg.ha-1) e quando houve déficit hídrico no período crítico de10 dias (2 dias antes até 7 depois) ao redor do apendoamento (1.451 kg.ha-1).

O sistema plantio direto (SPD) sob o enfoque da conservação e disponibilização de água em agricultura

No Brasil, a adoção do sistema plantio direto (SPD) alcança mais de 28 milhões de hectares. Os benefícios proporcionados por esta forma de manejo do solo são referendados amplamente no meio científico e reconhecido pela sociedade como gerador de benefícios aos recursos naturais solo, ar e água, bem como às culturas, que, em última instância, são favorecidas pelos ganhos em produtividade.

Ressalta-se que o SPD é composto por um complexo de tecnologias que perpassa o conceito de não revolvimento do solo e manutenção de palhada em superfície, pois se apregoa a inclusão de rotação de culturas, adição contínua de resíduos culturais e manutenção destes em superfície em quantidade maior que a demanda biológica do ambiente.

Observar e cumprir estas pressuposições a campo é de extrema importância quando se anseia por rendimentos elevados das culturas, pois a mera observância parcial destes preceitos pode implicar, até mesmo, em produtividades igual ou inferior àquelas que são obtidas com plantio convencional (PITTELKOW et al., 2015).

Dentre os vários benefícios advindos do SPD, destaque é dado à eficiente ciclagem de nutrientes, adição de carbono ao solo - fato contemporâneo relevante, pois tem sido associado a mitigação da emissão de gases de efeito estufa no atual contexto de mudança do clima global - aumento da infiltração de água no solo, redução de riscos de erosão e consequente perda de nutrientes por enxurrada, resultando em decréscimo nos riscos de degradação ambiental.

Interessante ressaltar que o SPD tem contribuído de forma efetiva na mitigação da erosão do solo, à qual se impõe responsabilidade por perdas econômicas superiores a 40 bilhões de dólares ao ano, na União Europeia e nos Estados Unidos da América, ao passo que no Brasil estima-se que este valor ultrapasse, em média, 225 milhões de dólares ao ano para os estados do Paraná e São Paulo (TELLES et al., 2011).

Outro exemplo, talvez pouco estudado, mas de grande impacto social, demonstra que o SPD pode reduzir o custo ambiental do sistema produtivo (com base em custo-reposição).

Nesse caso, Rodrigues (2005), comparando o SPD com o plantio convencional, estima, em região de cerrado, redução de 29,4% no custo ambiental da produção de milho e mais de 80% para a cultura da soja, que hoje é a principal commodity agrícola do País.

A conservação da água em agricultura tem assumido papel preponderante no tocante ao manejo dispensado ao solo, visto que se atribui à atividade agrícola o consumo de até 80% da água utilizada no Brasil (BERTOL et al., 2014). O SPD contribui para a retenção e armazenamento de água no solo, pois ocorrem mudanças físicas em atributos como a porosidade e a densidade do solo que favorecem tais processos.

Uma alteração física importante, nesse caso, é o aumento da conectividade dos macroporos no solo, maior no SPD em comparação ao plantio convencional (STRUDLEY et al., 2008), fato que interfere positivamente para a infiltração e consequentemente contribui para o maior armazenamento de água no solo.

Assim, inequivocamente, a observância dos princípios do SPD pode contribuir para melhorar a produtividade da água nos sistemas agrícolas produtivos.

Considerações finais

Ainda que seja indiscutível o potencial que a irrigação tem e pode ter na estabilização e na elevação do rendimento nas lavouras brasileiras, especialmente nos sistemas extensivos de produção de grãos, há que se considerar, por questões relacionadas com marcos legal, competição com outros usos pela água disponível e custos de implantação e operação dos sistemas, que, antes de se atribuir à irrigação o papel de panaceia para a cura de todos os males da nossa agricultura, existe espaço para melhoraria de práticas do manejo de cultivos e de solos, visando à elevação dos rendimentos atuais para níveis mais próximos dos rendimentos potenciais limitados, conforme a espécie, pela oferta de água das chuvas.

O primeiro passo é o domínio de conceitos relacionados com a dinâmica da água no sistema soloplanta-atmosfera, especialmente no tocante ao manejo a campo dos aspectos agronômicos e biofísicos da produtividade da água.

Começando pela quantificação da defasagem ou diferença entre os rendimentos que vem sendo obtidos nas lavouras e os potencialmente passives de alcançar, usando tecnologia adequada, com a oferta natural de água pela chuva.

Ou seja, conhecer a disponibilidade dos recursos do ambiente, definir as limitações e identificar as oportunidades para a melhoria de desempenho dos sistemas produtivos localmente.

Em muitos casos, a produtividade das lavouras é menos limitada pela disponibilidade de água do que pela má gestão agronômica das práticas de manejo dos cultivos (manejo do solo, época de semeadura, acuidade do processo de semeadura, escolha da cultivar, nutrição de plantas, controle sanitário, manejo de colheita, etc.).

Não raro, até por desconhecimento do tema, são colocadas visões ingênuas e postas demasiadas esperanças nas soluções biotecnológicas para o problema da seca em agricultura (transgenia, por exemplo).

Se lida, no caso da tolerância á seca, com redes genéticas complexas, envolvendo a interação e expressão e regulação de múltiplos genes ao mesmo tempo, com fortes interações ambientais.

Acrescente-se que, por ora, não se aceita o comprometimento de potencial de rendimento em troca de maior tolerância à seca.

Aos interessados no assunto, para ampliar a visão, recomenda-se a leitura dos artigos assinados por Turner (1997), Sadok & Sinclair (2011) e Hall & Richards (2013).

Referências

BERGMASCHI, H.; DALMAGO, G.A.; COMIRAN, F.; BERGONCI, J.I.; MÜLLER, A.B.; FRNAÇA, S.; SANTOS, A. O.; RADIN, B.; BIANCHI, C.A.M.; PEREIRA, P.G. Déficit hídrico e produtividade na cultura do milho. Pesquisa Agropecuária Brasileira, Brasília, v. 41, n. 2, p.243 - 249, 2006.

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PITTELKOW, C. M.; LIANG, XINQIANG, LINQUIST, B. A., VAN GROENINGEN, K. J.; LEE, J.; LUNDY, M. E.; VAN GESTEL, N.; SIX, J.; VENTEREA, T. T.; VAN KESSEL, C. Productivity limits and potentials of the principles of conservation agriculture. Nature, v. 517, p. 365 - 368, 2015.

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