1 Introdução
A demanda mundial por alimentos, energia e fibras aumenta a cada ano – estima-se que a população mundial cresça em torno de 40 % até o fim do século – e o Brasil, sendo um grande produtor de commodities agrícolas, tem e continuará tendo grande importância no suprimento de grande parte das necessidades mundiais. Entretanto, ao mesmo tempo que a busca por maiores produtividades aumenta no campo, a necessidade de uma produção mais sustentável, com a proteção do solo, da água e do ambiente também aumenta, uma vez que as futuras gerações dependem desses recursos para a sua sobrevivência.
Por muitos anos, agricultores e técnicos consideraram a fertilidade do solo puramente do ponto de vista químico, avaliando a capacidade do solo fornecer os nutrientes necessários para o ótimo crescimento e desenvolvimento das plantas. Aliado a esse pensamento mais simplista do sistema de produção, a adoção de práticas inadequadas, como o uso excessivo de pesticidas, utilização desbalanceada de fertilizantes inorgânicos solúveis, manejos eventuais do solo para sua descompactação, utilização de poucas espécies na rotação, entre outras, causou a perda da biodiversidade do solo e de processos importantes por ela realizado em muitas áreas, acarretando em uma elevada dependência por insumos externos e consequentemente aumentando os custos de produção.
Mais recentemente, problemas frequentes de restrições estruturais ao crescimento de raízes e a busca por uma agricultura mais equilibrada e sustentável, despertaram o interesse de muitos produtores a enxergar a fertilidade do solo também do ponto de vista físico e biológico. Esse pensamento holístico da fertilidade do solo (fertilidade química, física e biológica) é extremamente importante para que o processo produtivo se torne mais estável e resiliente ao longo dos anos, com manutenção mais constante das produções e com requerimentos externos cada vez menores para atingir um patamar elevado de produção, resultando assim em maior rentabilidade ao produtor.
2 Fertilidade biológica
Do ponto de vista biológico, a fertilidade do solo pode ser definida como a capacidade de os organismos que vivem no solo contribuírem para os requerimentos nutricionais das plantas e ao mesmo tempo mantendo processos biológicos que contribuem positivamente para o estado químico e físico do solo (Abbott & Murphy, 2007). Esses processos incluem a decomposição da matéria orgânica, a ciclagem e a obtenção de nutrientes (fixação biológica de N, solubilização de minerais), a agregação e estruturação do solo, a degradação de substâncias tóxicas e o controle populacional de pragas e doenças de solo através da maior atividade de organismos antagonistas (Araújo & Monteiro, 2007; Kaschuk et al., 2010).
Para beneficiar os processos biológicos que melhorem a fertilidade do solo, maior destaque deve ser dado ao habitat em que vivem os organismos responsáveis por esses processos. Conhecer como as condições ambientais e de manejo alteram a biota do solo é fundamental para que possamos alterá-las de forma mais eficiente e proporcionar assim a potencialização dos benefícios promovidos pelos microrganismos. Dentre os fatores responsáveis pela maior biodiversidade e atividade microbiana, podemos citar a temperatura e a umidade do solo, o pH, a disponibilidade de nutrientes e a presença de elementos tóxicos. Assim, manejos que permitam uma temperatura mais amena do solo e maior umidade, tais como a manutenção de cobertura constante do solo (palhada e culturas vivas) ao longo do ano são fundamentais para a manutenção de elevada biota do solo (Hungria et al., 2009). Outro aspecto importante que precisa ser pensado de maneira mais racional é a utilização de agrotóxicos para o controle de pragas e doenças. O uso excessivo desses produtos afeta toda a cadeia trófica do solo, alterando o equilíbrio das populações ali existentes (Malik et al., 2017) e muitas vezes favorecendo populações de organismos maléficos às plantas (fungos, bactérias e nematoides). Portanto, a utilização de pesticidas deveria ser pensada em um esquema de manejo integrado, utilizando- os somente quando realmente necessário.
A principal forma de nutrientes que os organismos vivos do solo utilizam para seu crescimento e desenvolvimento são os substratos orgânicos. Sistemas sustentáveis e com elevada fertilidade biológica são aqueles com fluxo elevado e constante de carbono prontamente disponível, condição necessária para sustentar a elevada atividade microbiana por períodos prolongados. Esses compostos orgânicos, necessários para otimizar a atividade biológica do solo, vêm através das plantas, as quais fornecem resíduos, raízes e exsudatos, cuja quantidade e qualidade depende de cada espécie cultivada na área (Figura 1). De maneira geral, sistemas agrícolas em que se predomine a complexidade de espécies na rotação, favorecem a variação de compostos orgânicos adicionados, com consequente aumento da biodiversidade do solo e da fertilidade biológica (Tiemann et al., 2015). Além disso, o manejo mecânico do solo (aração, gradagem, escarificação), por mais ocasional que ocorra, pode afetar negativamente a biota do solo (Hungria et al., 2009), uma vez que essa prática acelera o processo de oxidação de compostos orgânicos ricos em energia (Briedis et al., 2018). O menor fornecimento desses compostos orgânicos promove a diminuição da população e da atividade de organismos do solo, levando à perda de diversas funções acima mencionadas.
Finalmente, quando focamos na fertilidade biológica do solo dentro de um sistema produtivo, precisamos pensar em médio e longo períodos. Isso porque, contrariamente à rápida resposta das culturas quando um fertilizante sintético é adicionado, sistemas produtivos com foco na construção de um solo saudável demanda um tempo maior para que todos os benefícios sinergéticos trazidos pelos organismos do solo sejam alcançados.
3 Como podemos medir a fertilidade biológica do solo?
A mensuração da fertilidade biológica do solo é muito solicitada por produtores e técnicos a fim de orientar a tomada de decisão sobre possíveis práticas de manejo que aumentem a saúde e a qualidade do solo. Entretanto, essa mensuração não é prática usual em laboratórios comerciais de análise de solo. A nível de campo, alguns parâmetros podem ser avaliados de forma mais informal para uma estimativa da fertilidade biológica. A observação da presença ou não de minhocas talvez seja a avaliação mais simples e barata, mas que pode representar um bom parâmetro sobre a saúde geral do solo. Isso porque, as minhocas estão associadas à vários processos importantes para a manutenção da fertilidade e qualidade dos solos, como a decomposição de resíduos e da matéria orgânica, importante para a ciclagem de nutrientes, e construção de túneis e galerias que facilitam a aeração, infiltração de água e possibilitam uma menor compactação do solo (Brown & Domínguez, 2010). Esses efeitos geralmente beneficiam o crescimento radicular das plantas, refletindo no aumento da produtividade.
Além das minhocas, a contagem de outros organismos da macrofauna do solo (cupins, formigas, besouros, tatuzinhos, tesourinhas, caracóis, etc) pode ser realizada a campo através da catação manual ou de armadilhas (colocação de um recipiente dentro de uma mini trincheira). Esses organismos têm papel importante na fragmentação inicial e na mistura dos resíduos orgânicos e também atuam como agentes ativos da cadeia alimentar, alimentando-se e servindo de alimento para outros organismos do solo (Baretta et al., 2011). A abundância e, principalmente, a diversidade desses organismos no solo é um indicativo de que o sistema está equilibrado e funcionando de forma produtiva e mais sustentável.
Em nível de laboratório, algumas análises podem ser realizadas para a determinação do status biológico do solo. Entretanto, vale ressaltar que as propriedades biológicas são muito heterogêneas dentro do talhão e também no tempo e que nem sempre possuem correlação forte com a produtividade das culturas, sendo que seus efeitos (ciclagem de nutrientes, estruturação do solo, supressão de patógenos, etc) são mais pronunciados na estabilização da produção agrícola. Esses fatores em conjunto, faz com que valores de atributos biológicos sejam difíceis de ser interpretados e usados para definir as melhores práticas de manejo (Mendes et al., 2018). Apesar da dificuldade de interpretação de um determinado valor de atributo biológico, a sua alteração ao longo do tempo indica uma melhora ou não da qualidade do solo e seu acompanhamento é importante para monitorar os efeitos de um novo manejo implementado. Como os atributos biológicos são muito responsivos ao manejo (variam rápido), eles são bons indicadores de mudança na qualidade do solo, sendo observada variações muito mais antecipadas quando comparados com indicadores químicos e físicos (Hungria et al., 2009).
Dentre os atributos que podem ser quantificados em laboratório para o estabelecimento da fertilidade biológica do solo, destacam- se o carbono lábil, a biomassa microbiana, a respiração do solo e a atividade enzimática.
O carbono lábil (bio-disponível), que é a parte mais ativa da matéria orgânica, não é uma medida direta da fertilidade biológica, mas como ele tem grande influência sobre a atividade microbiana do solo por ser a fonte de energia para esses organismos, pode ser considerado um indicador indireto muito eficiente.
A biomassa microbiana, que é composta principalmente por bactérias e fungos, é medida através do peso de C ou de N em microrganismos presentes em uma porção de solo. Esse atributo é muito importante para a fertilidade biológica do solo, pois representa a abundância de microrganismos responsáveis pela decomposição da matéria orgânica, liberação de nutrientes e melhoria física do solo. Importante ressaltar aqui, que a disponibilização de nutrientes às plantas pela biomassa microbiana ocorre de maneira gradual ao longo do ciclo da cultura, diminuindo assim a possibilidade de perdas, processo comum com a aplicação de fertilizantes solúveis.
A respiração do solo é medida através da captura do CO2 liberado de um solo que fica incubado por alguns dias, sendo uma avaliação da atividade biológica dos microrganismos. Ela é muito dependente de condições ambientais (temperatura, umidade, oxigenação) e sobretudo da disponibilidade e qualidade do substrato. Assim, práticas que adicionam matéria orgânica, como o uso de culturas de cobertura, promovem a maior respiração do solo.
Finalmente, a avaliação da atividade enzimática é uma estimativa do potencial de enzimas do solo atuar em reações que resultam na decomposição de resíduos orgânicos (b-glicosidase) e na ciclagem de nutrientes tais como o N (amidase e urease), S (sulfatase) e P (fosfatase). Esse parâmetro biológico possui um grande potencial de definição da fertilidade biológica pois é sensível às variações de manejo, e os procedimentos de sua análise são relativamente simples e rápidos.
Apesar da já mencionada dificuldade de interpretação prática dos indicadores biológicos da fertilidade do solo, recentemente, tabelas de interpretação para alguns desses indicadores (Tabela 1), com base no rendimento acumulado de grãos e no teor de matéria orgânica, foram desenvolvidas para Latossolos Vermelhos do Cerrado (Mendes et al., 2018). Essa publicação foi fruto de anos de estudo, e ações como essa precisam ser desenvolvidas em todo o Brasil para que produtores e técnicos tenham mais segurança na interpretação dos resultados de indicadores biológicos. Tabelas como essas são importantes para direcionar o manejo utilizado na propriedade sem precisar comparar esses indicadores com uma área de referência ou monitorá-los no tempo.
4 Considerações finais
Nessa pequena abordagem de um assunto tão complexo, vimos que o aumento da fertilidade biológica é governado pela manutenção de um ambiente adequado para a biota do solo (umidade, temperatura, pH e oxigenação), pela manutenção dos níveis de matéria orgânica e pelo suprimento constante de resíduos (alimento), tanto em quantidade quanto em qualidade. Diante desse exposto, podemos afirmar que o sistema plantio direto, uma vez que atende esses requisitos, pode ser considerado uma prática eficiente para atingir níveis elevados de qualidade e resiliência do solo. Entretanto, vale ressaltar que os benefícios do sistema plantio direto para os organismos do solo, somente serão máximos se esse for bem manejado. Isso quer dizer, que o solo precisa se manter coberto ao longo do ano (para atenuar a temperatura e manter a umidade), sendo portanto necessário um elevado aporte de palhada, a rotação de culturas deve preconizar a diversidade de espécies e o manejo ocasional do solo (gradagem, escarificação) deve ser eliminado. Além disso, visto que os processos biológicos do solo demoram a se desenvolver e que o equilíbrio do sistema é atingido ao longo do tempo, paciência é a palavra chave que os produtores precisam ter em mente até que os benefícios de um solo saudável sejam demonstrados na sua plenitude.